domingo, 19 de abril de 2020

A Irmã de Ana Bolena. Philippa Gregory. «Aquele homem, de pé, no cadafalso, sob a luz do Sol do início da manhã, fora o parceiro do rei em partidas de ténis, seu rival em justas, seu amigo em centenas de sessões de bebida e jogos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Duas Irmãs, um Rei
Primavera de 1521
«Conseguia ouvir o rufar abafado de tambores. Mas não via mais nada, para além dos atilhos do corpete da dama que tinha diante de mim, que tapava a minha visão do cadafalso. Estava nesta corte há mais de um ano e presenciara centenas de festividades, mas nunca uma como esta. Dando um passo ligeiramente para o lado e inclinando o pescoço, consegui ver o condenado, acompanhado pelo padre, caminhando devagar, da Torre para a zona relvada onde a plataforma de madeira o aguardava, o bloco de madeira posicionado ao centro, o executor vestido e preparado para a tarefa, em mangas de camisa e com um capuz a cobrir-lhe a cabeça. Parecia mais uma mascarada do que um acontecimento real, e eu assisti como se fosse um entretenimento da corte. O rei, sentado no trono, parecia distraído, como se estivesse a rever mentalmente o seu discurso de indulto. Atrás dele, estava aquele que é meu marido há um ano, William Carey, o meu irmão, Jorge, e o meu pai, sir Tomás Bolena, todos com ar grave. Eu encolhi os dedos dos pés no interior dos meus chinelos de seda e desejei que o rei se apressasse a conceder a clemência, para que pudéssemos ir todos tomar o pequeno-almoço. Tinha apenas treze anos, estava sempre com fome.
O duque de Buckinghamshire, ao longe, no cadafalso, despiu o seu casaco grosso. Era um parente suficientemente próximo para que eu pudesse chamar-lhe tio. Estivera presente no meu casamento e oferecera-me um bracelete dourado. O meu pai dissera-me que ele tinha ofendido o rei de inúmeras formas: corria-lhe sangue real nas veias e mantinha uma comitiva de homens armados em número demasiado elevado para tranquilidade de um rei que ainda não se sentia totalmente seguro no seu trono; e o pior era que se supunha que teria afirmado que, neste momento, o rei não tinha nenhum filho e herdeiro, não conseguia gerar nenhum filho e herdeiro, e que o mais provável seria que morresse sem um filho que lhe sucedesse no trono. Um pensamento destes não deve ser proferido em voz alta. O rei, a corte, o país inteiro sabiam que a rainha devia gerar um rapaz, e que esse rapaz devia nascer dentro de pouco tempo. Sugerir o contrário era dar o primeiro passo no caminho que conduzia aos degraus de madeira do cadafalso que o duque, meu tio, agora subia, firmemente e sem medo. Um bom cortesão nunca profere verdades incómodas. A vida de uma corte deve ser sempre alegre.
O tio Stafford aproximou-se da frente do palco para pronunciar as suas últimas palavras. Eu estava demasiado longe dele para ouvir, e, de qualquer forma, estava a observar o rei, que aguardava a sua deixa para dar um passo em frente e conceder o indulto real. Aquele homem, de pé, no cadafalso, sob a luz do Sol do início da manhã, fora o parceiro do rei em partidas de ténis, seu rival em justas, seu amigo em centenas de sessões de bebida e jogos, tinham sido companheiros desde a infância do rei. O rei estava a dar-lhe uma lição, uma lição vigorosa e pública, e depois iria perdoar-lhe e todos poderíamos ir tomar o pequeno-almoço. A figura distante voltou-se para o confessor. Inclinou a cabeça para receber a bênção e beijou o rosário. Ajoelhou-se diante do cepo e agarrou-o com as duas mãos. Perguntei-me como seria, encostar a face à madeira suave e encerada, sentir o odor do vento morno vindo do rio, ouvir, lá no alto, o grito das gaivotas. Mesmo sabendo, como ele sabia, que se tratava de uma mascarada e não de um acontecimento real, deveria ser estranho para o Tio pousar a cabeça e saber que o executor estava de pé atrás dele.
O carrasco ergueu o machado. Olhei para o rei. Estava a tardar muito na sua intervenção. Voltei a olhar para o palco. O meu tio, com a cabeça vergada, sacudiu os braços abertos, em sinal de consentimento, o sinal de que o machado podia ser descido. Olhei de novo para o rei, ele deveria levantar-se nesse momento. Mas permanecia sentado, com o seu belo rosto implacável. E enquanto ainda estava a olhar para ele, ouviu-se outro rufar dos tambores, subitamente silenciado, e depois o baque do machado, primeiro uma vez, depois outra, e uma terceira vez: um som tão doméstico como o de partir lenha. Incrédula, vi a cabeça do meu tio ressaltar na palha e um jorro escarlate de sangue emanar do pescoço estranhamente decepado. O homem do machado, que tinha um capuz negro, colocou de parte o enorme machado com manchas de sangue e pegou na cabeça pelo cabelo espesso e encaracolado, para que todos pudéssemos ver aquela estranha coisa, semelhante a uma máscara: negra, com a venda, que ia da testa ao nariz, e os dentes expostos num derradeiro sorriso desafiador.
O rei ergueu-se devagar da sua cadeira e eu pensei, como uma criança: meu Deus, como isto vai ser terrivelmente embaraçoso. Deixou para demasiado tarde. Correu tudo mal. Esqueceu-se de falar a tempo. Mas eu estava errada. Ele não deixara para demasiado tarde, não se esquecera. Queria que o meu tio morresse diante de toda a corte, para que todos pudessem saber que só havia um rei, e que era Henrique. Só podia existir um rei, e esse rei era Henrique. E iria nascer um filho a este rei, a mera sugestão do contrário implicaria uma morte vergonhosa. A corte regressou em silêncio ao Palácio de Westminster em três barcaças, levadas a remos pelo rio acima». In Philippa Gregory, A Irmã de Ana Bolena, Duas Irmãs, um Rei, 2001, Civilização Editora, 2007/2008-2012, ISBN 978-972-262-546-3.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT