Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Chamavam-lhe
chato, davam uma explicação ridícula a cada sílaba, e queriam até que o nome,
além da forma, tivesse cor pardacenta. Estas ninharias faziam-me rir, mas era
um riso que podia literalmente dizer-se pranto. Queixei-me, uma vez, muito em
segredo ao padre, e tive em paga uma repreensão severa. Chamou-me vaidoso,
orgulhoso e soberbo. Lembrou-me o pouco pano que eu tinha para cortar por largo
com as tesouras do amor-próprio, juntou outras metáforas assim sentenciosas, e
concluiu com alguns textos bíblicos, que me não pareceram bem aplicados. A sua
doutrina estou em que era a melhor, mas, desta vez, o meu espírito não recebeu
o grão abençoado entre os espinhos, que lá fizera nascer o desprezo dos
condiscípulos e do mestre. A irmã do padre era visitada de longe em longe por
duas senhoras idosas, e com elas vinha uma nova, que eu faço aqui figurar em
poucas linhas, porque foi ela quem primeiro achou no meu corpo indícios de um
nascimento alto.
Estava
eu sozinho e escondido entre as faias, que sombreavam o fundo do quintal.
Vieram lá ter comigo as velhas e a nova. Esta encarou-me com interesse, e disse
para dona Amónia: este menino parece-me que é muito triste!... Eu estranhei
esta mostra de atenção; levantei-me do meu banco de pedra; perfilei-me como um recruta
e fiz-lhe a minha cortesia muito provinciana. E é tão bem, criadinho!, disse
uma das velhas, pondo-me a mão na cabeça. E outra acrescentou: o menino não
vai, aos domingos, ver a sua família? Não tenho família nenhuma, respondi eu
com um desembaraço que não parecia meu. É porque vieram encontrar-se com o
pensamento que mais me dominava, e que à força de amargura me cultivara, por
assim dizer, a eloquência da sensibilidade. Pois o menino não tem família?,
disse a nova. Calei-me. E senti que os olhos se me arrasavam de lágrimas; mas,
neste momento, gorjeou um passarinho entre as faias, e eu senti-me consolado.
Lembrou-me a andorinha. E a velha continuou: dona Antónia não nos tinha dito
isto... É verdade!, disseram as outras em coro.
Eu não
podia dizer também mais do que ele... É para mim um segredo, como para ele, o
seu nascimento... Dona Antónia, tartamudeando, satisfez assim os primeiros
assomos de curiosidade às suas hóspedes, mas evitou-lhes os segundos, que
deviam ser-lhe atribulados... A rapariga, essa media-me com atenciosa reflexão,
e olhava-me os pés e as mãos, como se quisesse decifrar o enigma do meu
nascimento, segundo a quiromancia. E voltando-se depois para as tias, disse com
vivacidade: olhem que mão e que pé tão pequenino!... É verdade!, exclamaram as
velhas, menos dona Antónia, que diligenciava distrair as suas amigas daquela
análise. Não!, disse a cabalística menina, aposto que este menino não é de
classe baixa! Porquê?, interpelou a irmã do padre, com uma visagem de pasmo. Não
vê aquele pé e aquela mão! Os filhos da gentalha não vêm assim ao mundo. Hás-de
sempre falar contra a gentalha, Isabelinha!, redarguiu a mãe ou tia. Todos são
filhos de Deus; todos têm pés e mãos.
Eu não
nego isso, disse a gentil aristocrata com menos azedume, mas o que eu sei é que
conheço uma pessoa de bem pelos pés, e vou jurar se quem vai dentro de uma
carruagem puxada a quatro é filho de um alfaiate, contanto que leve a mão à
vista na portinhola. Isso parece-me de mais!, retorquiu a tia com a melhor
boa-fé. E eu, não sei porquê, simpatizava com o orgulho da tal Isabelinha.
Gostava de ouvi-la, e quisera que ela encontrasse em mim alguns indícios mais
da minha fidalguia. Se isto é miséria, perdoem-na a uma criança que, antes de
aspirar a ter nascido por detrás de um reposteiro heráldico, já se contentava
com ter um pai sapateiro, ou justiçado por ladrão. A família retirou-se. E eu
fiquei reparando muito no meu pé e na minha mão». In Camilo Castelo Branco, Mistérios
de Lisboa, 1854, Edições Quidnovi, 2010, ISBN 978-989-628-187-8.
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