segunda-feira, 13 de abril de 2020

Mistérios de Lisboa. Camilo Castelo Branco. «Lembrou-me a andorinha. E a velha continuou: dona Antónia não nos tinha dito isto... É verdade!, disseram as outras em coro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Chamavam-lhe chato, davam uma explicação ridícula a cada sílaba, e queriam até que o nome, além da forma, tivesse cor pardacenta. Estas ninharias faziam-me rir, mas era um riso que podia literalmente dizer-se pranto. Queixei-me, uma vez, muito em segredo ao padre, e tive em paga uma repreensão severa. Chamou-me vaidoso, orgulhoso e soberbo. Lembrou-me o pouco pano que eu tinha para cortar por largo com as tesouras do amor-próprio, juntou outras metáforas assim sentenciosas, e concluiu com alguns textos bíblicos, que me não pareceram bem aplicados. A sua doutrina estou em que era a melhor, mas, desta vez, o meu espírito não recebeu o grão abençoado entre os espinhos, que lá fizera nascer o desprezo dos condiscípulos e do mestre. A irmã do padre era visitada de longe em longe por duas senhoras idosas, e com elas vinha uma nova, que eu faço aqui figurar em poucas linhas, porque foi ela quem primeiro achou no meu corpo indícios de um nascimento alto.
Estava eu sozinho e escondido entre as faias, que sombreavam o fundo do quintal. Vieram lá ter comigo as velhas e a nova. Esta encarou-me com interesse, e disse para dona Amónia: este menino parece-me que é muito triste!... Eu estranhei esta mostra de atenção; levantei-me do meu banco de pedra; perfilei-me como um recruta e fiz-lhe a minha cortesia muito provinciana. E é tão bem, criadinho!, disse uma das velhas, pondo-me a mão na cabeça. E outra acrescentou: o menino não vai, aos domingos, ver a sua família? Não tenho família nenhuma, respondi eu com um desembaraço que não parecia meu. É porque vieram encontrar-se com o pensamento que mais me dominava, e que à força de amargura me cultivara, por assim dizer, a eloquência da sensibilidade. Pois o menino não tem família?, disse a nova. Calei-me. E senti que os olhos se me arrasavam de lágrimas; mas, neste momento, gorjeou um passarinho entre as faias, e eu senti-me consolado. Lembrou-me a andorinha. E a velha continuou: dona Antónia não nos tinha dito isto... É verdade!, disseram as outras em coro.
Eu não podia dizer também mais do que ele... É para mim um segredo, como para ele, o seu nascimento... Dona Antónia, tartamudeando, satisfez assim os primeiros assomos de curiosidade às suas hóspedes, mas evitou-lhes os segundos, que deviam ser-lhe atribulados... A rapariga, essa media-me com atenciosa reflexão, e olhava-me os pés e as mãos, como se quisesse decifrar o enigma do meu nascimento, segundo a quiromancia. E voltando-se depois para as tias, disse com vivacidade: olhem que mão e que pé tão pequenino!... É verdade!, exclamaram as velhas, menos dona Antónia, que diligenciava distrair as suas amigas daquela análise. Não!, disse a cabalística menina, aposto que este menino não é de classe baixa! Porquê?, interpelou a irmã do padre, com uma visagem de pasmo. Não vê aquele pé e aquela mão! Os filhos da gentalha não vêm assim ao mundo. Hás-de sempre falar contra a gentalha, Isabelinha!, redarguiu a mãe ou tia. Todos são filhos de Deus; todos têm pés e mãos.
Eu não nego isso, disse a gentil aristocrata com menos azedume, mas o que eu sei é que conheço uma pessoa de bem pelos pés, e vou jurar se quem vai dentro de uma carruagem puxada a quatro é filho de um alfaiate, contanto que leve a mão à vista na portinhola. Isso parece-me de mais!, retorquiu a tia com a melhor boa-fé. E eu, não sei porquê, simpatizava com o orgulho da tal Isabelinha. Gostava de ouvi-la, e quisera que ela encontrasse em mim alguns indícios mais da minha fidalguia. Se isto é miséria, perdoem-na a uma criança que, antes de aspirar a ter nascido por detrás de um reposteiro heráldico, já se contentava com ter um pai sapateiro, ou justiçado por ladrão. A família retirou-se. E eu fiquei reparando muito no meu pé e na minha mão». In Camilo Castelo Branco, Mistérios de Lisboa, 1854, Edições Quidnovi, 2010, ISBN 978-989-628-187-8.

Cortesia de Quidnovi/JDACT