terça-feira, 28 de abril de 2020

Imprimatur. O Segredo do Papa. Monaldi & Sorti. «Abade Melani, de Pistoia!, chamou o oficial olhando para o livro de registo dos pensioneiros. Os rendilhados à moda francesa que adornavam o pulso…»

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11 de Setembro de 1683
«Os homens do Bargello (responsáveis pela ordem pública e, por extensão, a sede onde residiam, também equipada com prisão) apresentaram-se ao fim da tarde, no preciso momento em que eu acendia a tocha que iluminava a nossa insígnia. Nas mãos traziam tábuas e martelos; e selos, e correntes, e pregos enormes. À medida que avançavam pela via dell’Orso, vociferavam e gesticulavam imperiosos para dar a entender aos transeuntes e aos grupos de pessoas que desimpedissem a rua. Chegados junto a mim, começaram a esbracejar: todos para dentro, todos para dentro, temos de fechar o estabelecimento!, gritou aquele que dava ordens.

Ainda não tivera tempo para descer do banco a que tinha subido e já umas mãos poderosas me empurravam com brutalidade pela entrada, enquanto outros se postavam de maneira ameaçadora a bloquear a porta. Fiquei atordoado. Despertaram-me bruscamente as pessoas que, ao ouvirem os gritos dos oficiais, se tinham ajuntado à entrada como um relâmpago vindo do nada. Eram os pensioneiros da nossa estalagem, conhecida como estalagem do Donzel. Eram apenas nove e estavam todos presentes: esperavam que fosse servido o jantar e, como todas as noites, passeavam no rés-do-chão entre as otomanas do átrio e as mesas das duas salas de refeição contíguas, fingindo-se absorvidos por uma coisa e outra; mas, na realidade, todos gravitam em redor do jovem pensioneiro francês, o músico Roberto Devizé, que com grande habilidade se exercitava à guitarra.
Deixai-me sair! Ah, como ousais? Tirai as mãos de cima de mim! Não posso cá ficar! Estou de excelente saúde, percebestes! De excelente saúde! Deixai-me passar, já vos disse! Quem assim gritava (consegui entrevê-lo por detrás da floresta de lanças com que os homens de armas o vigiavam) era o padre Robleda: o jesuíta espanhol, nosso pensioneiro, que, tomado pelo pânico, começara a bradar ficando com a respiração curta e o pescoço vermelho e inchado. A cena fez-me recordar os gritos dos porcos quando ficam pendurados de cabeça para baixo e são mortos. A barulheira reboava pela rua e, parecia-me, até à praceta, que espontaneamente se tinha esvaziado num abrir e fechar de olhos. Do outro lado da estrada entrevi o peixeiro e os dois criados da vizinha estalagem do Urso que observavam a cena.
Vão fechar-nos, gritei-lhes tentando fazer-me ver, mas os três ficaram impassíveis. Um vinagreiro, um vendedor de neve e um pequeno grupo de rapazitos, cujos gritos animavam a rua até há alguns momentos, esconderam-se amedrontados ao dobrar da esquina. Entretanto, o meu patrão, o senhor Pellegrino de Grandis, dispôs uma banca no limiar da estalagem. Um oficial do Bargello colocou em cima da banca o livro de registo dos pensioneiros, que tinha acabado de exigir, e deu início à chamada. Padre Juan de Robleda, de Granada.
Como nunca tinha assistido a um fecho de estabelecimento por quarentena, e como nunca ninguém me tinha falado a tal respeito, pensei de início que nos quisessem prender. Isto está a ficar feio, isto está ficar feio, sibilou Breoozzi, o veneziano. Apareça, padre Robleda!, gritou impaciente o oficial que fazia a chamada. O jesuíta, estatelado no chão após lutar em vão com os homens armados, levantou-se e depois de ter verificado que todas as saídas estavam bloqueadas por lanças, respondeu à chamada erguendo a mão peluda. Foi de imediato empurrado para junto de mim. Era o padre Robleda. Viera de Espanha há alguns dias e, por causa dos acontecimentos, desde manhã que vinha submetendo a dura prova os nossos ouvidos com os seus gritos de medo.
Abade Melani, de Pistoia!, chamou o oficial olhando para o livro de registo dos pensioneiros. Os rendilhados à moda francesa que adornavam o pulso do nosso pensioneiro mais recente, chegado ao amanhecer, fenderam a sombra. Ergueu a mão diligentemente ao ouvir o seu nome, e os seus pequenos olhos triangulares brilharam como estiletes saindo da sombra. O jesuíta não mexeu um músculo para se afastar quando Melani, num andamento solene, tranquilo e silencioso, se juntou a nós. Tinham sido precisamente os gritos do abade, nessa manhã, a dar o alarme». In Monaldi & Sorti, 2002, Editorial Presença, 2004, ISBN 972-233-286-4.

Cortesia de EPresença/JDACT