segunda-feira, 27 de abril de 2020

As Rosas de Atacama. Luis Sepúlveda. «Então, aquele homem vê como tudo muda, como se transforma no preciso instante em que o sol se cansa de ser mil vezes diminuto, multiplicado nas escamas de ouro que os ribeiros arrastam»

Cortesia de wikipedia e jdact

Histórias Marginais
«(…) Ignoro quanto tempo permaneci diante daquela pedra, mas, à medida que a tarde caía, vi outras mãos repetindo a inscrição para evitar que o pó do esquecimento a cobrisse: uma russa, Vlaska, que diante do seco esqueleto do Mar de Aral me contou a sua luta para impedir aquela loucura que culminou com a morte de um mar cheio de vida. Um alemão, Friedrich Niemand, Frederico Ninguém, que foi declarado morto em 1940 e que até 1966 gastou as solas dos sapatos visitando ministérios e templos burocráticos para demonstrar que estava vivo. Um argentino, Lucas, que, farto de discursos hipócritas, se decidiu a salvar as matas da Patagónia andina sem outra ajuda além da das próprias mãos. Um chileno, o professor Gálvez, que, num exílio que nunca compreendeu, sonhava com a sua velha sala de aulas e acordava com os dedos cheios de giz. Um equatoriano, Vidal, que suportava as sovas dos senhores da terra encomendando-se a Greta Garbo. Uma uruguaia, Camila, que aos setenta anos decidiu que todos os rapazes perseguidos eram seus parentes. Um italiano, Giuseppe, que chegou ao Chile por engano, casou por engano, teve os seus melhores amigos por engano, foi feliz por causa de outro engano enorme e reivindicou o direito de se enganar. Um bengali, mister Simpah, que ama os barcos e os leva a desmantelar repetindo-lhes as belezas dos mares que sulcaram. E o meu amigo Fredy Taberna, que enfrentou os seus assassinos cantando... Todos eles e muitos mais estavam ali, repetindo as palavras gravadas numa pedra, e compreendi que tinha de contar as suas histórias.

Noite na Selva Aguaruna
Não conheço aquele homem parado na margem do rio, respirando fundo e sorrindo ao reconhecer os odores que viajam pelo ar. Não o conheço, mas sei que aquele homem é meu irmão. Aquele homem que sabe que o pólen viaja preso à arbitrária vontade do vento, mas confiante e a sonhar com a fértil terra que o espera, aquele homem é meu irmão. E o meu irmão sabe muitas coisas. Sabe, por exemplo, que um grama de pólen é como um grama de si mesmo, docemente predestinado ao lodo germinal, ao mistério daquilo que se erguerá vivo de ramos, de frutos e de filhos, com a bela certeza das transformações, do começo inevitável e do necessário final, porque o que é imutável encerra o perigo do eterno, e só os deuses têm tempo para a eternidade. Aquele homem que empurra a sua canoa sobre a praia de areia fina e se prepara para receber o milagre que em cada entardecer abre na selva as portas do mistério, aquele homem é necessariamente meu irmão. Enquanto a subtil resistência da luz diurna se deixa vencer amorosamente pelo abraço da penumbra, escuto-o a murmurar as palavras exactas que a sua embarcação merece: encontrei-te quando não passavas de um ramo, limpei o terreno que te rodeava, protegi-te do caruncho e da térmita, orientei-te a verticalidade do tronco e, ao deitar-te abaixo para fazer de ti o meu prolongamento na água, a cada machadada marquei também uma cicatriz nos meus braços. Depois, já na água, prometi que havíamos de continuar juntos a viagem começada no teu tempo de semente. E cumpri. Estamos em paz. Então, aquele homem vê como tudo muda, como se transforma no preciso instante em que o sol se cansa de ser mil vezes diminuto, multiplicado nas escamas de ouro que os ribeiros arrastam.
A floresta apaga a sua intensa cor verde. O tucano fecha o brilho das suas penas. As pupilas do quati deixam de reflectir a inocência dos frutos. A infatigável formiga suspende a transferência do mundo para a sua cónica morada. O jacaré decide abrir os olhos para que as sombras lhe mostrem aquilo que evitou ver durante o dia. O correr do rio torna-se tranquilo, ingénuo da sua terrível grandeza». In Luis Sepúlveda, As Rosas de Atacama, 2000, Porto Editora, 2020, ISBN 978-972-0-04091-6.

Cortesia de PEditora/JDACT