domingo, 5 de abril de 2020

Serena. Ian McEwan. «Poesia e música pop, teoria política e fofoca, quartetos de cordas e moda universitária, nouvelle vague e futebol. Dez anos depois a fórmula estava por toda parte»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Qual é o famoso romance que começa assim? A temperatura bateu nos trinta e dois graus no dia em que ela chegou. Não tem impacto? Você não conhece? Eu fiz as minhas amigas que estudavam inglês no Newnham rirem quando disse que O vale das bonecas era tão bom quanto qualquer romance de Jane Austen. Elas riram, ficaram-me sacaneando meses a fio. E elas não tinham lido nem uma página da obra de Susann. Mas e daí? Quem é que dava a mínima para as opiniões desinformadas de uma matemática frustrada? Nem eu, nem as minhas amigas. Ao menos nessa medida eu estava livre. A questão dos meus hábitos de leitura na graduação não é uma digressão. Esses livros me levaram directo à minha carreira na Inteligência. No meu último ano a minha amiga Rona Kemp começou uma revista semanal chamada Quis? Esses projectos surgiam e sumiam às dúzias, mas o dela estava à frente do seu tempo com aquela mistura de alta e baixa cultura. Poesia e música pop, teoria política e fofoca, quartetos de cordas e moda universitária, nouvelle vague e futebol. Dez anos depois a fórmula estava por toda parte.

Pode não ter sido a intenção de Rona, mas ela esteve entre as primeiras a ver o potencial dessa fórmula. Ela acabou na Vogue, passando pelo Times Literary Supplement e aí chegando a uma ascensão e queda incendiárias, começando revistas novas em Manhattan e no Rio. O duplo ponto de interrogação nesse primeiro título dela foi uma inovação que ajudou a garantir uma sequência de onze edições. Lembrando do meu período Susann, ela me pediu para escrever uma coluna regular, O Que Eu Li Semana Passada. As minhas instruções eram ser informal e onívora. Mole! Eu escrevia como falava, normalmente fazendo pouco mais que dar um sumário das tramas dos livros que tinha acabado de devorar, e, numa autoparódia consciente, enfatizava um ou outro veredicto ocasional com uma fileira de pontos de exclamação. Numa ou noutra ocasião, gente que eu não conhecia me parou na rua para dizer isso. Até o meu jocoso professor de matemática fez um comentário elogioso. Foi o mais perto que cheguei de sentir o gostinho daquele doce e inebriante elixir que é a fama estudantil. Eu tinha escrito meia dúzia de textos leves quando alguma coisa deu errado. Como muitos escritores que obtêm certo sucesso, eu comecei a levar-me demasiadamente a sério. Eu era uma menina com gostos desorientados, uma cabeça vazia, no ponto para ser conquistada. Estava esperando, como eles diziam em alguns dos romances que eu andava lendo, que o Homem Ideal aparecesse e me derrubasse. O meu Homem Ideal era um russo severo. Eu descobria um autor e um assunto para a coluna e virava fã. De repente eu tinha um tema, e a missão de convencer os outros. Comecei a me dar o direito de fazer várias revisões dos textos. Em vez de falar directo com a página, eu estava fazendo segundas e depois terceiras versões. Na minha modesta opinião, a minha coluna tinha-se tornado um serviço público de vital importância. Acordava no meio da noite para apagar parágrafos inteiros e rabiscar flechinhas e balões pelas páginas. Eu fazia importantes caminhadas. Sabia que o meu encanto popular ia diminuir, mas não dava a mínima. Essa diminuição provava o que eu estava tentando dizer, era o heróico preço que eu tinha que pagar. As pessoas erradas estavam lendo o que eu escrevia. Não dei a mínima quando Rona reclamou. Na verdade, me senti justificada. Isso não está exactamente informal, ela disse sem mover um músculo enquanto me devolvia o meu texto uma tarde no Copper Kettle. Não foi isso que a gente disse que ia fazer. Ela estava certa. A minha leveza e os meus pontos de exclamação tinham-se dissolvido na fúria e na premência que estreitavam os meus interesses e destruíam o meu estilo». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.

Cortesia da CdasLetras/JDACT