domingo, 26 de abril de 2020

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. «Sem aquele nevoeiro talvez alguém a conseguisse ver lá do alto. Uma mancha verde estendida no fundo de um canal, a poucos passos de onde na Primavera…»

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O Anjo da Neve
«(…) Bem que o pai lhe dizia aprende a olhar para onde vais. Se ela se recordasse que na neve fresca o peso não deve ser posto à frente e se, eventualmente, Eric, alguns dias antes, lhe tivesse regulado melhor aquelas juntaras e se o pai tivesse insistido um pouco mais em dizer mas a Alice pesa vinte e oito quilos, não estarão demasiado apertadas assim? O salto não foi assim tão alto. Alguns metros, o tempo suficiente para sentir um pouco de vazio no estômago e nada debaixo dos pés. Logo de seguida Alice já estava de cabeça no chão, de esquis espetados na vertical, que tinham levado a melhor sobre o perónio. Não sentiu muitas dores. Não sentiu quase nada, a dizer a verdade. Apenas a neve que se lhe enfiara por baixo do cachecol e dentro do capacete e que queimava em contacto com a pele.
Os braços foram a primeira coisa que mexeu. Quando era mais pequena e acordava quando tinha nevado, o pai embrulhava-a em roupa e depois levava-a para baixo. Caminhavam até ao meio do pátio, depois, de mãos dadas, contavam um, dois e três e deixavam-se cair para trás, como um peso morto. O pai dizia-lhe, agora faz o anjo, e Alice mexia os braços para cima e para baixo e, quando se levantava e olhava para o seu perfil gravado no manto branco, parecia mesmo a sombra de um anjo de asas abertas. Alice fez o anjo na neve, assim, sem motivo especial, apenas para demonstrar a si própria que ainda estava viva. Conseguiu virar a cabeça para um lado e recomeçar a respirar, ainda que lhe parecesse que o ar que inalava não chegava precisamente lá onde deveria chegar. Tinha a estranha sensação de não saber como é que as suas pernas se tinham virado. A estranhíssima sensação de já não as ter. Tentou levantar-se, mas não conseguiu.
Sem aquele nevoeiro talvez alguém a conseguisse ver lá do alto. Uma mancha verde estendida no fundo de um canal, a poucos passos de onde na Primavera recomeçaria a correr um pequeno rio e o primeiro calor faria brotar morangos silvestres, que se esperares o tempo suficiente ficam doces como rebuçados e num dia és capaz de encher um cesto deles. Alice gritou por ajuda, mas a sua vozinha débil foi logo engolida pelo nevoeiro. Tentou levantar-se de novo, pelo menos virar-se, mas não houve nada a fazer. O pai dissera-lhe que quem morre congelado, instantes antes de esticar o pernil sente grande calor e tem vontade de se despir, de modo que quase todos os que morrem de frio são encontrados de cuecas. E ela ainda por cima tinha as cuecas todas sujas.
Começou a perder sensibilidade também nos dedos. Tirou uma luva, soprou-lhe para dentro e depois voltou a meter o punho fechado para se aquecer. Fez o mesmo também com a outra mão. Repetiu aquele gesto ridículo duas ou três vezes. São as extremidades que te lixam, dizia-lhe sempre o pai. Os dedos dos pés e das mãos, o nariz, as orelhas. O coração faz de tudo para ter o sangue para si e deixa congelar o resto. Alice imaginou os seus dedos a tornarem-se azuis e depois, lentamente, também os braços e as pernas. Pensou no coração que bombeava cada vez com mais força e procurava reter o calor restante. Ficaria de tal maneira rígida que se passasse por ali um lobo partia-lhe um braço simplesmente caminhando por cima dela.

Devem andar à minha procura.
Sabe-se lá se existem mesmo lobos por aqui.
Já não sinto os dedos.
Se não tivesse bebido leite.
Peso à frente, pensou.
Não, os lobos hibernam.
Eric deve estar furioso.
Não me apetece nada entrar naquelas competições.
Não digas tolices, sabes muito bem que os lobos não hibernam.

Os seus pensamentos tornaram-se progressivamente mais ilógicos e circulares. Lentamente, o sol mergulhou por trás do monte Chaberton fingindo que não se passava nada. A sombra das montanhas alongou-se sobre Alice e o nevoeiro tornou-se negro». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT