quarta-feira, 8 de abril de 2020

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «O taverneiro, entre os que assistiam, limpava as mãos ao avental e dizia: ah! Se homens desta cepa tivessem pelejado naquela maldita batalha!»

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O Sapateiro Santo
«(…) Telo, sem arma, tirara o capote e, rodando-o no ar, procurava desarmar algum dos meliantes. Savachão retirou de sob a axila a muleta, assentou a perna doente no chão e arremeteu volteando o madeiro com tanta violência e destreza que escachou a cabeça a um, arrombou o costado a outro e desfez a muleta no traseiro de um terceiro que virava costas a fugir, já Luís, João e Cristóvão acudiam à refrega e castigavam com suas estocadas os salteadores e os punham em debandada malferidos. Assomavam homens e mulheres à porta de uma taverna a verem a bernarda. Savachão ainda tentou apanhar a muleta, mas ela estava feita em pedaços. Caminhou coxeando da perna dorida. Uma rapariga adiantou-se da porta e veio dar-lhe o braço: agarra-te a mim, filho. Ao menos sirvo de cajado. O taverneiro, entre os que assistiam, limpava as mãos ao avental e dizia: ah! Se homens desta cepa tivessem pelejado naquela maldita batalha!
Savachão entrou pelo braço da rapariga. Os outros seguiam-no. Sentaram-se numa mesa vaga a um canto. Pareceis mendigos, disse o taverneiro, mas mendigo não luta assim contra malandros. Romeiros, mentiu Telo, a caminho de Santiago. E que vão querer Vossas Senhorias? Queremos cear, respondeu Cristóvão. Vinho, ainda me resta uma pipa. De estalo. Carne, só toucinho rançoso. Pão, viste-lo. Na Casa da Índia nem um saco de trigo da Flandres. Levaram tudo..., para os Mouros comerem... Mas tenho umas migas de farelo com couve e feijão que é um primor. Traz do que tiveres. Romeiro tem boa boca.
As mulheres rodeavam os valentões comentando o sucedido. A rapariga, sentada ao lado de Savachão, enxugava-lhe a testa suada: querido, que valente foste! Uma muleta! Minha mãe! Só visto!... Tens uns lindos olhos... E esta boca?..., e deu-lhe um beijo nos lábios... Nem o vento nem o sol, a espuma do mar, o sopro de asas das gaivotas, o respiro de velas enfunadas, o calor das achas da lareira..., o frémito da montaria, a vertigem de uma luta de vida e de morte... Este beijo ficou-me na carne. Hei-de senti-lo por toda a vida. Nunca meu corpo estremeceu assim... Que me está a acontecer?... Olhou a jovem. Era formosa, embora lhe sombreassem os cantos dos olhos e da boca pequenas linhas de amargura. Lembrava-lhe alguém que conhecia, lembrava-lhe... Também danças? Também lês o passado e o futuro? Também? Sim, como... Ah! Faço-te lembrar outra. A tua namorada abandonou-te? É por isso que te fizeste andarilho? Não, não! Deixa lá, filho. Sei o que é dor de corno. Eu faço-te esquecer. Como te chamas? Minha mãe! Olha-me um que me pergunta o nome! Há quantos séculos foi isso? Não tens nome? Os homens procuram-me pelo meu corpo. Que importa quem sou? Pu… sem nome... E, de repente, vens tu, meu docinho, e perguntas-me pelo fundo de mim... Diz.
Queres mesmo saber? Acenou que sim. Essa é a única coisa que ainda guardo de mim. Deixa-a comigo, o meu segredo... O resto..., e encolhia os ombros, ... Olha, chama-me Cadela. É nome a condizer. Ouço-o todas as noites. Putarroa, Cabra, Tinhosa..., lindos nomes deste baptizado... Respeitarei o teu pudor, princesa. Tão querido! Vem, dizia a moça tomando-lhe da mão. Descansarás um pouco lá em cima, enquanto não chega a ceia... Levantou-se Savachão como adormecido e, levado pela rapariga, subiu as escadas e desapareceram. Ao fim da noite, quando se dispôs a descer, ela disse-lhe: nós temos dois corações, meu querido. Aquele que bate aqui no peito..., dizem que é um pedaço de carne maior do que o de um cabrito..., o outro, não sei bem dizer..., é uma a modos de boceta invisível onde nós guardamos pequenas coisas, olha, uma flor que ali vai fanar, desbotar, descheirar, sem apodrecer, como para a não deixarmos morrer. É aí que guardo o que sinto por ti. Tu és o meu rei e no meu coração eu tenho..., dizem que os reis têm uma cadeira de ouro numa sala muito grande...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT