sexta-feira, 10 de abril de 2020

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«E que era Abulafia, com sua reserva secreta de ficheiros? O escrínio do qual Belbo sabia, ou supunha saber, a Sophia. Escolheu um nome secreto para penetrar no íntimo de Abulafia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) No entanto, Diotallevi o estava arrastando a esse tipo de vertigem, e eu devia ter percebido. Quantas vezes vira Belbo, depois do expediente, tentando programas que lhe permitissem verificar os cálculos de Djotallevi, para demonstrar-me pelo menos que o seu Abu lhe dizia a verdade em poucos segundos, sem necessidade de calcular a mão, sobre pergaminhos amarelecidos, com sistemas numéricos antediluvianos, que talvez, digo por dizer, não conhecessem nem mesmo o zero? Debalde, também Abu respondia, até onde podia chegar, por meio de notações exponenciais, de modo que Belbo não conseguia humilhar Diotallevi com uma tela que se enchesse de zeros até ao infinito, pálida imitação visual da multiplicação dos universos combinatórios e da explosão de todos os mundos possíveis... Ora no entanto, depois de tudo quanto havia acontecido, e com a gravura rosa-cruciana à minha frente era impossível que Belbo não tivesse recorrido, na sua busca de uma password, àqueles exercícios iniciais com o nome de Deus. Mas haveria de jogar com números como trinta e seis ou cento e vinte, se era verdade, como eu conjecturava, que ele também estivesse obcecado por aqueles algarismos. Portanto não podia ter combinado as quatro letras hebraicas porque, bem o sabia, quatro pedras construíam apenas vinte e quatro casas.
Poderia ter tomado a transcrição italiana, que contém ainda duas vogais. Com seis letras teria à sua disposição setecentas e vinte permutações. Teria podido escolher a trigésima sexta ou a centésima vigésima. Havia chegado ali por volta das onze, e já era uma. Tinha que compor um programa para anagramas de seis letras, bastando apenas modificar aquele existente para quatro. Precisava respirar um pouco. Desci à rua, comprei comida, outra garrafa de uísque. Subi de novo, deixei as sanduíches num ângulo, passei logo ao uísque, pus o disco de sistema para o Basic, compus o programa para seis letras, com os erros de sempre, e gastei uma boa meia hora nisso, mas aí pelas duas e meia o programa girava e no painel, e diante dos meus olhos, desfilavam agora os setecentos e vinte nomes de Deus.
Tomei em mãos o papel corrido da impressora, sem destacá-lo, como se consultasse o rolo da Torah originária. Tentei com o nome número trinta e seis. Escuro completo. Um último gole de uísque e, em seguida, com os dedos hesitantes, experimentei o número cento e vinte. Nada. Tinha vontade de morrer. No entanto agora eu era Jacopo Belbo e Jacopo Belbo devia ter pensado como eu estava pensando. Certamente cometera algum erro, um erro besta qualquer, um engano de nada. Estava a um passo da solução: talvez Belbo, por motivos que me escapavam, tinha contado de baixo para cima? Casaubon, seu estúpido, disse para mim. Claro, de baixo para cima. Ou então, da direita para a esquerda. Seu input não tinha sido IAHVEH - como não haver pensado nisso antes, mas sim HEVHAI. Era natural que naquele ponto a ordem das permutações se invertesse. Precisava pois contar de baixo para cima. Experimentei de novo ambos os números. Nada aconteceu. Deu tudo errado. Havia-me obstinado numa hipótese elegante mas falsa. Ocorre com os melhores cientistas. Não, com os melhores cientistas, só, não. Com todos. Não havíamos observado precisamente um mês antes que nos últimos tempos foram publicados três romances nos quais o protagonista procura o nome de Deus num computador? Belbo não teria sido assim tão banal. Depois, vamos lá!, quando se escolhe uma senha escolhe-se uma de que se possa lembrar facilmente, que venha espontânea a digitar-se quase por instinto. Vejamos só, IHVHEA! Teria pois de sobrepor o Notarikon à Temurah, e inventar um acróstico para recordar a palavra. Algo assim como: Jmelda. Hoje Vingaste Hiram Estupidamente Assassinado...
Além do mais, por que Belbo devia pensar nos termos cabalísticos de Diotallevi? Ele estava obcecado pelo Plano, e no Plano havíamos metido tantos Outros componentes, os Rosa-Cruzes, a Sinarquia, os Homúnculos, o Pêndulo, a Torre, os Druidas, a Ennoia... A Ennoia... Pensei em Lorenza Pellegrini. Estendi a mão e desvirei a foto que eu havia censurado. Busquei afastar um pensamento importuno, a lembrança daquela tarde no Piemonte... Aproximei de mim a foto e li a dedicatória. Dizia: porque sou a primeira e a última. Sou a preferida e a odiada. Sou a prostituta e a santa. Sophia.
Deve ter sido depois da festa em casa de Riccardo. Sophia, seis letras. E por que me ocorria anagramá-las? Eu é que pensava de modo retorcido. Belbo ama Lorenza, ama-a precisamente por ela ser como é, e ela é Sophia, e pensando que ela, naquele momento, talvez... Não, ou antes, Belbo pensa de modo muito mais retorcido. Voltavam-me à lembrança as palavras de Diotallevi: na segunda sefirah o Alef tenebroso se transmuda no Alef luminoso. Do Ponto Obscuro brotam as letras da Torah, o corpo são as consoantes, o hálito as vogais, e juntas acompanham a cantilena do devoto. Quando a melodia dos signos se move movem-se com ela as consoantes e as vogais. Surge então Hokmah, a Sabedoria, a Sapiência, a ideia primordial na qual tudo se contém como num escrínio, pronto para desenvolver-se na criação. Em Hokmah está contida a essência de tudo quanto se seguirá...
E que era Abulafia, com sua reserva secreta de ficheiros? O escrínio do qual Belbo sabia, ou supunha saber, a Sophia. Escolheu um nome secreto para penetrar no íntimo de Abulafia, o objecto com o qual faz amor (o único) mas ao fazê-lo pensa ao mesmo tempo em Lorenza, busca uma palavra que conquiste Abulafia mas que lhe sirva de talismã também para possuir Lorenza, gostaria de penetrar no coração de Lorenza e compreender, assim como pode penetrar no coração de Abulafia, quer que Abulafia seja impenetrável por todos os demais assim como Lorenza é impenetrável para ele, ilude-se em proteger, conhecer e conquistar o segredo de Lorenza assim como possui aquele de Abulafia...
Estava inventando para mim mesmo uma explicação e deixava-me iludir que fosse verdadeira. Igual em relação ao Plano: tomava os meus desejos como sendo a realidade. Mas como já estava bêbado, voltei ao teclado e digitei SOPHIA. A máquina voltou a perguntar com delicadeza: tens a senha? Máquina estúpida, não te emocionas nem mesmo com o pensamento de Lorenza». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT