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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Tinham ouvido barulho de
motores de aviões e, ao saírem de casa, olharam para o céu e, espantados,
assistiram ao combate. Rajadas de metralhadoras para um lado e para o outro, clarões
no céu. Não conseguiam perceber quais eram os aviões ingleses e quais os
alemães. Rajadas e mais rajadas, e até começaram a cair bombas. Algumas
explodiram e mataram um rebanho de cabras. Viram os aviões a cair. Pelo menos
três deles. Em chamas. Depois de se ver livre de um pedaço de cinza, que largou
no cinzeiro, Mary deu mais uma passa no cigarro. Sabia contar uma história,
fazer as pausas no momento certo, mantendo-me interessado, desejoso de conhecer
o resto da narrativa. Os restantes aviões afastaram-se. Os nossos para sul e os
alemães para nascente.
Mary e os guardas da GNR
descobriram dois aviões nazis despenhados, ambos carbonizados. No primeiro,
contaram seis cadáveres; no segundo, apenas dois, não havendo sinais de
sobreviventes. Contudo, os guardas juravam que haviam visto um terceiro avião a
cair, não sabendo se era inglês ou alemão. Podia ser um dos nossos, podiam
existir feridos, disse ela. Um dos guardas acompanhou-me e batemos a região no
dia seguinte. Só o encontrámos à tarde. Estava num barranco, partido em dois,
com o focinho dentro de um riacho. Na parte da frente não havia ninguém e
animei-me com a hipótese de os pilotos terem saltado de pára-quedas. Mas, quando
vi a parte de trás, o meu coração ficou negro. Havia dois cadáveres no banco
traseiro. Morreram carbonizados, abraçados um ao outro. Ficou em silêncio uns
momentos. Depois disse: a última vez que fui ao Alentejo, disse ela, fui a
Moura. Tinha havido uma batalha aérea na região. Os nossos aviões contra os dos
boches. Os deles vieram do Sul de França, os nossos vinham de Gibraltar, a
acompanhar um comboio de navios mercantes.
Deu
mais um gole no seu brandy, e uma passa no cigarro.
Os U-Boats andam sempre a
tentar torpedear os nossos navios. E os Condores atacam pelo ar, com bombas e
metralha. Quando os nossos aviões se cruzam com eles, há chumbo grosso. As
batalhas começam no mar, mas por vezes entram por Portugal. Como dessa vez... Fora
três semanas antes, contou. Próximo de Moura, vários Condores Focker Wulf lutaram
com aviões ingleses. Mary partira de Lisboa quando soubera da refrega, chegando
lá um dia depois. Encontrei três guardas da GNR que haviam assistido. Estavam
de serviço numa herdade ali perto. Às três da manhã. Jack Gil, deve ser
horrível morrer duas vezes. Dois jovens, rapazes, que morreram duas vezes.
Primeiro de medo, abraçados, enquanto o avião se despenhava. E depois
carbonizados. Deu um novo gole no brandy e continuou: a cerca de 200 metros,
pendurado num eucalipto, estava um dos pilotos, enforcado nas cordas do
pára-quedas. Demorámos horas para o descer. Como a noite caiu, só no dia seguinte
é que voltei ao local. Descobri, a cerca de 500 metros do barranco, um outro
pára-quedas. Estava abandonado no chão, aberto, e voltei a animar-me. Havia uma
possibilidade de o segundo piloto ter sobrevivido! Embora existisse sangue no
chão, o homem tinha conseguido sair do local. Andámos às voltas, e só o
encontrámos um quilómetro para leste, já bastante afastado do avião. Foi o azar
dele. Mary levou a mão à testa, triste e abatida. Abanou a cabeça, e depois a
sua mão penteou uma farripa de cabelo que lhe caía para a cara. Tinha os olhos
molhados. Se o tivéssemos descoberto um dia antes, talvez o salvássemos. Assim,
foi impossível. Devia ter morrido uma hora antes. No bolso do casaco, descobri
um bilhete, onde ele escrevera: Digam à Clarissa que morri apaixonado por
ela, e ao meu pai que morri a lutar o melhor que sabia.
Mary fechou os olhos, e assim se
manteve mais de um minuto. Eu não disse nada: o silêncio era a minha forma de
respeitar o que ela me descrevera. Quando voltou a falar, lamentou-se, olhando
para o tecto, como se estivesse a falar com Deus: se eu tivesse chegado mais
cedo... Bastava umas horas e chegaria a tempo. Depois, baixou os olhos e
implorou: é por isso que preciso da tua ajuda, Jack Gil. Não consigo continuar
sozinha. Se tivesse ido com outra pessoa, talvez encontrássemos o rapaz vivo!
Tinha acabado de vir de Vila Real de Santo António, onde fora buscar um piloto.
Cheguei e nem jantei, voltei a meter-me no carro a caminho de Moura. É
impossível fazer isto tudo sozinha, percebes? Preciso da tua ajuda». In
Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN
978-972-462-174-6.
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