sábado, 11 de abril de 2020

Uma Noite em Nova York. Tiago Rebelo. «Filipe ainda se lembrava de Isabel todos os dias à uma da tarde, não por um qualquer delírio de escritor sonhador, mas por ser a hora de chegar ao escritório e telefonar para ela»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Se a vida fosse perfeita, ou melhor, se a vida fosse justa, provavelmente não lhe bastaria uma, teria precisado de duas, pensou Filipe. Tinha o mundo a seus pés, literalmente. Sentado em uma mesa do bar, no último piso do hotel, quarenta andares acima da rua, voltou a cabeça para a direita e descobriu o seu rosto, a centímetros, na janela panorâmica. Viu uma expressão melancólica reflectida no vidro. Era uma noite de Dezembro em Nova York e, apesar do ambiente obscuro do bar, as lâmpadas fracas que pontuavam por cima do balcão circular à sua esquerda, bem como a luz mortiça que atravessava o abajur lacado em azul de metileno, eram suficientes para o impedir de ver claramente os riscos luminosos das ruas traçadas à régua, cruzando-se e formando quadrados até ao fim de Manhattan, até ao buraco onde antes despontava o World Trade Center e agora havia o Memorial Site, até ao rio Hudson. Não vislumbrou a cidade, viu-se a si próprio. Sorriu, um reflexo da alma. A graduação dos óculos leves, discretos, aumentara acentuadamente ao cair dos quarenta, antes disso, quase não os punha, e o cabelo, já ralo, usava bem curto. Em contrapartida, tinha a mesma cara de sempre, sem rugas, e nem se podia dizer que estava envelhecendo, pois, de aspecto, não estava ficando mais velho. Vinte anos antes chegara a deixar crescer a barba, angustiado por ninguém o levar a sério. Agora não tinha barba, e não havia maneira de convencer uma única pessoa dos seus quarenta e nove anos a poucos minutos dos cinquenta.
Uma gargalhada abafada pelas paredes acolchoadas do bar e pela carpete espessa azul-escuro chamou-lhe momentaneamente a atenção para quatro executivos com copos nas mãos, sentados três mesas à frente, fazendo um brinde. Festejavam um negócio fechado, certamente. Um garçom hispânico, aprumado na cerimónia com um colete de riscas, preto e grená, aproximou-se da sua mesa com uma garrafa de scotch e um pequeno balde de gelo numa bandeja prateada. One more, Mister Passos? Why not? ele concordou, pensando por que não, se vou de elevador para o quarto? O garçom, jovem, serviu uma dose dupla pelo preço de uma, cortesia de uma discreta e respeitosa cumplicidade com o cliente. Há três dias que ele acabava a noite sentado ali, naquela mesma mesa, com o laptop aberto, embrenhado nos últimos capítulos de uma história que estava escrevendo. Un poco de hielo, por favor. Como no. Dos piedras, verdad? Si, gracias, Esteban.
O garçom se afastou, Filipe deu um gole na bebida, colocou o copo na mesa, tirou um cigarro do maço, acendeu-o, recostou-se na cadeira, concentrado na tela do computador, encheu os pulmões de fumo, sentiu o consolo do cigarro sem lhe pesar na consciência. Soltou uma baforada de fumo enquanto ainda olhava para o computador, suspirou de satisfação, chegou-se à frente, carregou na tecla do ponto final da derradeira frase. Pensou em Isabel. Um dia, já lá iam oito anos, o tempo corria, o tempo curava, dizia-se, apaziguava a angústia dos momentos dolorosos, mas, sabia-o pela sua própria fatalidade, não corrigia os erros de uma vida, um dia ela pedira que lhe escrevesse uma história. Lembrava-se exactamente de onde estava, na rua, encostado num carro estacionado junto ao passeio, de telrfone móvel na mão. Fazia sol, era Verão. Filipe desvalorizou o pedido, disse uma piada qualquer, ela não gostou, o momento passou. Ele entendeu o pedido como um capricho dela, não lhe deu importância, mas, evidentemente, ela não lhe pedia uma história, mas uma demonstração de amor. Percebeu isso muito depois, quando caiu em si à uma da tarde de um dia solitário, no escritório de apenas uma sala, arrendada ao mês, onde as horas fluíam, escrevendo os livros que, num futuro não muito longínquo, acabariam sendo vendidos pelo mundo afora. Era apenas um tapete gasto, uma escrivaninha de madeira barata, o computador, uma cadeira confortável e pilhas de livros crescendo pelas paredes, pois nunca se incomodara em comprar uma estante. As salas contíguas eram alugadas para jovens universitários, que davam aulas a estudantes mais novos em sessões contínuas pagas por hora ao final da tarde. Até lá, o andar inteiro ficava mergulhado num silêncio conventual, e à sala de Filipe, no primeiro piso, chegava o rumor pacato da rua: o andar depressa dos saltos nas calçadas, as conversas indistintas, o movimento incessante dos automóveis.
Filipe ainda se lembrava de Isabel todos os dias à uma da tarde, não por um qualquer delírio de escritor sonhador, mas por ser a hora de chegar ao escritório e telefonar para ela. Já não o fazia, mas ainda sentia o sobressalto das treze em ponto, como um lembrete incorrigível do espírito. Sentia uma súbita alegria, e logo a consciência do vazio, como um soco no estômago. O escritório tinha uma pequena varanda; a fachada era feita de ripas de madeira, lembrando os trópicos naqueles dias abafados de Outubro em que vinha uma bátega súbita e, sem mais, afogava as viúvas idosas nas suas próprias cozinhas, nos bairros de casas típicas escalavradas pelas intempéries mais arrasadoras. Naquele dia escaldante e húmido, trajado de nuvens baixas e carregadas, Filipe foi assaltado como sempre à uma da tarde pela urgência de telefonar para Isabel. Nesse momento, uma trovoada estourou como se fosse na sala, e um dilúvio de quinze minutos passou por ali. Filipe, atordoado, levantou-se da cadeira e foi à janela espantar-se com o espectáculo das águas. Lá em baixo, no aperto da Rua de São José, onde os carros e os peões se cruzavam por milagre, uns descendo para a Baixa, outros subindo para o Marquês de Pombal, um rio espontâneo tomou conta da via, e uma correnteza capaz de arrastar uma vida trepou pelos passeios exíguos. Espreitou pelas portadas entreabertas, viu umas pernas de mulher debaixo de um guarda-chuva vermelho lutando com o temporal. Acendeu um cigarro, momentaneamente distraído, fantasiando uma história para aquela imagem que lhe espicaçava a imaginação. Depois, como num piscar de olhos, a imagem desvaneceu-se e voltou a pensar em Isabel. Devia ter-lhe escrito uma história, censurou-se, devia ter feito tantas coisasOcorreu-lhe uma ironia: era um famoso escritor de histórias de amor e não conseguira salvar o seu romance com a mulher da sua vida. A chuva começou a se alastrar pelo tapete e a salpicar-lhe os sapatos, mas Filipe, imerso numa perplexidade, não reparou na poça a seus pés». In Tiago Rebelo, Uma Noite em Nova York, 2011, Edições ASA, ISBN 978-989-231-376-4.

Cortesia de EASA/JDACT