sábado, 18 de abril de 2020

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Pior que isso, retorquiu um dos outros, aterrorizado. Acho mas é que os mouros tornaram a... Não acabou a frase. De um momento para o outro, a parte final do túnel desabou…»

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«(…) Este já era o quarto túnel que alemães e flamengos construíam. Sabe-se lá porque artes do diabo, os infiéis descobriam constantemente em que direcção os cruzados escavavam. E construíam contra--minas. Defendiam a sua cidade tão afincadamente como no início. As tropas cristãs não vislumbravam o fim do cerco. Não obstante os rumores de fome e pestilência na cidade, ninguém sabia se os mouros ainda teriam provisões suficientes para que mais de vinte mil pessoas sobrevivessem ao Inverno. Por seu lado, os cruzados começavam a preocupar-se com a falta de pão e de vinho. No início, parecera-lhes que o conteúdo das matamorras duraria eternamente, mas trinta mil almas já o tinham desbastado. Além disso, ninguém se preocupara em cuidar dos pomares e das hortas. Havia figos para colher e uvas para vindimar, tarefas que as mulheres lá iam cumprindo, mas quem se iria ocupar da confecção do vinho? O que beberiam? A água provocava muitas vezes diarreias e febre, que já tinham causado as suas vítimas. Também o gado, de que os cruzados se tinham apoderado, já fora quase todo consumido. Felizmente, iam-se caçando lebres e patos bravos, houvesse tempo. E podia-se pescar todos os dias, que o peixe não acabava.
Naquele dia, Konrad fora logo pela manhã apoderado de um mau pressentimento e entrara no túnel de dentes cerrados. Já tinham atingido os fundamentos das muralhas e havia que substituí-lo por traves de madeira, às quais mais tarde se chegaria o fogo. Mas o terreno entre a Porta de al-hammã e o porto era muito instável e algo dizia a Konrad que a mina desabaria. Rezava o tempo todo, pedindo a Deus que lhe permitisse sair dali vivo. Atingiu-se felizmente o meio do dia sem ameaças de desabamento. Konrad e os homens que com ele trabalhavam no fim do túnel fizeram uma pausa para comer. Não estavam autorizados a sair, comiam mesmo ali as merendas que outros lhes traziam. Cheio de fome, Konrad fez um esgar de descontentamento perante o caldo de nabos frio e o pedaço de pão duro que lhe coubera em sorte. Mas era melhor que nada e ele lá fez por engolir aquilo. A refeição ia a meio, quando fios de terra começaram a cair do tecto. Konrad sentiu o medo nas entranhas e praguejou: com mil raios! Será que o diabo da mina irá mesmo desabar? Ele mal tinha acabado de falar, quando se aperceberam de ruídos surdos sobre as suas cabeças.
Pior que isso, retorquiu um dos outros, aterrorizado. Acho mas é que os mouros tornaram a... Não acabou a frase. De um momento para o outro, a parte final do túnel desabou por cima de meia dúzia de homens. Konrad, que felizmente se encontrava afastado o suficiente para não ser atingido, pôs-se de pé num salto, olhando horrorizado para o espaço onde os seus companheiros jaziam enterrados. Será que o resto também desabaria? Não teve tempo para perder com essa conjectura. Do tecto, de onde a terra tinha caído, surgiram-lhes quatro mouros armados até aos dentes. Os cruzados largaram as suas malgas e deitaram a correr, pois não estavam suficientemente armados para lhes dar luta. Konrad trazia a sua espada à cinta e o elmo na cabeça, mas não tinha, nem a cota de malha, nem o escudo, que só o atrapalhariam nas escavações. Pelo túnel fora, o inimigo atrás deles, gritavam aos outros que escoravam a mina noutros pontos mais sensíveis: os mouros descobriram-nos! É fugir! Mas quantos mais homens fugiam à sua frente, mais devagar se movia a fila. Os que estavam mais para trás, como Konrad, bem incitavam os companheiros para que acelerassem. Era difícil porém coordenar uma fuga espontânea num túnel tão apertado.
Konrad não era o último da fila, dois cruzados corriam atrás dele. E ele apercebeu-se de como o último era aniquilado. Desembainhou a sua espada para o que desse e viesse, enquanto gritava para a frente: mais depressa, com mil raios! Atacam-nos! Deu-se conta como o companheiro imediatamente atrás dele caía, com um gemido. E os que corriam à sua frente não eram suficientemente rápidos. Tinha que se virar e lutar. Não só se defenderia a si próprio, como possibilitaria a fuga aos seus companheiros. Deu meia-volta. As velas ao longo da mina, que ainda não se tinham apagado com a deslocação do ar, chegavam para ver o vulto do inimigo de espada em punho, envergando uma cota de malha e segurando um escudo redondo na mão esquerda. Konrad lançou-se a ele com um grito de raiva, tentando atingi-lo na cabeça com a sua espada que segurava com as duas mãos. O mouro, que não contava com ataque tão repentino, quase caiu, mas teve o reflexo de levantar o escudo, contra o qual bateu a arma de Konrad. E logo respondeu ao ataque. Konrad defendia-se como podia, em clara situação desvantajosa, por não estar tão bem armado. Não aguentaria muito tempo. Deu-se entretanto conta que se formara um grande espaço entre ele e os que fugiam à sua frente. Assim que a luta o permitiu, tornou a virar-se e correu o mais que podia. Quanto faltaria até chegar ao fim do túnel? Há algumas semanas que ele o percorria pelo menos duas vezes por dia e conhecia, por assim dizer, os cantos à casa. Mas tinha perdido qualquer noção de espaço. E quando se aproximou dos seus companheiros em fuga, mais lentos, teve que se lançar mais uma vez à luta». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT