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«(…) Este já era o quarto túnel que alemães e flamengos
construíam. Sabe-se lá porque artes do diabo, os infiéis descobriam
constantemente em que direcção os cruzados escavavam. E construíam
contra--minas. Defendiam a sua cidade tão afincadamente como no início. As
tropas cristãs não vislumbravam o fim do cerco. Não obstante os rumores de fome
e pestilência na cidade, ninguém sabia se os mouros ainda teriam provisões
suficientes para que mais de vinte mil pessoas sobrevivessem ao Inverno. Por
seu lado, os cruzados começavam a preocupar-se com a falta de pão e de vinho.
No início, parecera-lhes que o conteúdo das matamorras duraria eternamente, mas
trinta mil almas já o tinham desbastado. Além disso, ninguém se preocupara em
cuidar dos pomares e das hortas. Havia figos para colher e uvas para vindimar,
tarefas que as mulheres lá iam cumprindo, mas quem se iria ocupar da confecção
do vinho? O que beberiam? A água provocava muitas vezes diarreias e febre, que
já tinham causado as suas vítimas. Também o gado, de que os cruzados se tinham
apoderado, já fora quase todo consumido. Felizmente, iam-se caçando lebres e
patos bravos, houvesse tempo. E podia-se pescar todos os dias, que o peixe não acabava.
Naquele
dia, Konrad fora logo pela manhã apoderado de um mau pressentimento e entrara
no túnel de dentes cerrados. Já tinham atingido os fundamentos das muralhas e
havia que substituí-lo por traves de madeira, às quais mais tarde se chegaria o
fogo. Mas o terreno entre a Porta de al-hammã e o porto era muito instável e
algo dizia a Konrad que a mina desabaria. Rezava o tempo todo, pedindo a Deus
que lhe permitisse sair dali vivo. Atingiu-se felizmente o meio do dia sem
ameaças de desabamento. Konrad e os homens que com ele trabalhavam no fim do
túnel fizeram uma pausa para comer. Não estavam autorizados a sair, comiam
mesmo ali as merendas que outros lhes traziam. Cheio de fome, Konrad fez um
esgar de descontentamento perante o caldo de nabos frio e o pedaço de pão duro
que lhe coubera em sorte. Mas era melhor que nada e ele lá fez por engolir
aquilo. A refeição ia a meio, quando fios de terra começaram a cair do tecto.
Konrad sentiu o medo nas entranhas e praguejou: com mil raios! Será que o diabo
da mina irá mesmo desabar? Ele mal tinha acabado de falar, quando se
aperceberam de ruídos surdos sobre as suas cabeças.
Pior
que isso, retorquiu um dos outros, aterrorizado. Acho mas é que os mouros
tornaram a... Não acabou a frase. De um momento para o outro, a parte final do
túnel desabou por cima de meia dúzia de homens. Konrad, que felizmente se
encontrava afastado o suficiente para não ser atingido, pôs-se de pé num salto,
olhando horrorizado para o espaço onde os seus companheiros jaziam enterrados.
Será que o resto também desabaria? Não teve tempo para perder com essa
conjectura. Do tecto, de onde a terra tinha caído, surgiram-lhes quatro mouros
armados até aos dentes. Os cruzados largaram as suas malgas e deitaram a
correr, pois não estavam suficientemente armados para lhes dar luta. Konrad
trazia a sua espada à cinta e o elmo na cabeça, mas não tinha, nem a cota de
malha, nem o escudo, que só o atrapalhariam nas escavações. Pelo túnel fora, o
inimigo atrás deles, gritavam aos outros que escoravam a mina noutros pontos
mais sensíveis: os mouros descobriram-nos! É fugir! Mas quantos mais homens
fugiam à sua frente, mais devagar se movia a fila. Os que estavam mais para trás, como Konrad, bem incitavam os
companheiros para que acelerassem. Era difícil porém coordenar uma fuga
espontânea num túnel tão apertado.
Konrad
não era o último da fila, dois cruzados corriam atrás dele. E ele apercebeu-se
de como o último era aniquilado. Desembainhou a sua espada para o que desse e
viesse, enquanto gritava para a frente: mais depressa, com mil raios!
Atacam-nos! Deu-se conta como o companheiro imediatamente atrás dele caía, com
um gemido. E os que corriam à sua frente não eram suficientemente rápidos.
Tinha que se virar e lutar. Não só se defenderia a si próprio, como
possibilitaria a fuga aos seus companheiros. Deu meia-volta. As velas ao longo
da mina, que ainda não se tinham apagado com a deslocação do ar, chegavam para
ver o vulto do inimigo de espada em punho, envergando uma cota de malha e
segurando um escudo redondo na mão esquerda. Konrad lançou-se a ele com um
grito de raiva, tentando atingi-lo na cabeça com a sua espada que segurava com
as duas mãos. O mouro, que não contava com ataque tão repentino, quase caiu,
mas teve o reflexo de levantar o escudo, contra o qual bateu a arma de Konrad.
E logo respondeu ao ataque. Konrad defendia-se como podia, em clara
situação desvantajosa, por não estar tão bem armado. Não aguentaria muito
tempo. Deu-se entretanto conta que se formara um grande espaço entre ele e os que
fugiam à sua frente. Assim que a luta o permitiu, tornou a virar-se e correu o
mais que podia. Quanto faltaria até chegar ao fim do túnel? Há algumas semanas
que ele o percorria pelo menos duas vezes por dia e conhecia, por assim dizer,
os cantos à casa. Mas tinha perdido qualquer noção de espaço. E quando se
aproximou dos seus companheiros em fuga, mais lentos, teve que se lançar mais
uma vez à luta». In Cristina Torrão, A Cruz
de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT