terça-feira, 14 de abril de 2020

Mistérios de Lisboa. Camilo Castelo Branco. «Depois, nunca mais. Aquela Isabelinha dourou-me a imaginação, engrandeceu-me o espírito e enfureceu-me de uma vaidade que eu já não podia esconder aos meus condiscípulos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As andorinhas, desde este dia, voaram desapercebidas para mim. Desci a vista do céu para as coisas deste mundo. A vaidade começou a materializar-me. Parecia-me repugnante e baixa a comparação de um homem com um pássaro. Enquanto me não disseram que o pé e a mão delicada eram condições de um nascimento ilustre, imaginei-me filho de sapateiro, de soldado raso e de aguadeiro. Depois, nunca mais. Aquela Isabelinha dourou-me a imaginação, engrandeceu-me o espírito e enfureceu-me de uma vaidade que eu já não podia esconder aos meus condiscípulos. Foi péssima a ocasião em que eles vieram chasquear-me o nome de chato e pardo! Nesse dia, em que eu lamentava a baixeza do meu nome, e chegara a convencer-me de que João era um nome ignóbil, um nome de carreteiro e de gaiato, vieram eles insultar-me na minha solidão. O mais desabusado, e também o mais comprido em sobrenomes heróicos, cruzou os braços em postura dramática, diante de mim, e disse com um sorriso de escárnio: João! João! João!, três vezes João! Porque te não crismas, infeliz?! Os teus condiscípulos lamentam o infortúnio de contarem no seu grémio um companheiro chamado João! Lava-lhes esta afronta, se podes! Encarei primeiro com desprezo este orador; depois respondi com presença de espírito e azedume:  não me admirava que rapazes da minha idade viessem zombar do meu nome; mas o senhor, que tem vinte e dois anos, é coisa que me faz mais compaixão que zanga! Porque não aproveita melhor o seu tempo, tirando significados e amigando-se com o Virgílio, seu inimigo cruel? Esquece-se que foi reprovado em latim no ano passado, e que há-de sê-lo no ano que vem, se gastar o seu tempo a compor discursos para fazer rir os meus condiscípulos à minha custa?
Esta resposta irritou o meu adulto companheiro, muito mais porque os meus condiscípulos, que tinham vindo para se rirem de mim, riram-se dele. Com os olhos a fuzilarem raiva, chegou-se ao pé de mim, e puxou-me uma orelha desapiedadamente. A dor senti-a forte, mas a dor moral, a vergonha, não me pungia menos. Conheci então, pela primeira vez, o desejo da vingança. A primeira coisa que estava ao pé de mim era um vaso pequeno com um cato eriçado e espinhoso como um cedeiro. Dei-lhe com ele na cara. E devia ser insofrível a dor que lhe fez, porque o taludo gracejador levou as mãos à cara e não fez contra mim o mais ligeiro movimento. Os condiscípulos ficaram pasmados e silenciosos. Eu passei por entre eles com um pueril orgulho de uma acção legitimamente nobre, e recolhi-me ao meu quarto a recapitular o primeiro capítulo da minha Mada.
Não me deixaram só muitos minutos. Dona Antónia, colérica e descomposta, entrou de repente. O que eu coligi do seu grasnido foi que uma tremenda justiça ia ser feita em mim, logo que o padre recolhesse. Arrefecidos os calores do meu gentil esforço, comecei a ter medo do mestre. Parece que o coração se me despegava, quando soavam passos na vizinhança do meu quarto. Invoquei todos os recursos da resignação para suavizar o castigo, que me atormentava em perspectiva. Imaginei-me com um braço quebrado, com uma gorilha ao pescoço, com oito dias de pão e água, com o ódio do padre eternamente irritado contra mim. Quis transigir evangelicamente com todas estas torturas, mas não houve nada que diminuísse a sezão do medo. Senti febre! O susto parece que não me pisava os ossos, e macerava as carnes. Era uma doença indefinível aquela minha!
O que eu sei é que caí sobre a minha cama, alquebrado e esvaído, como se uma catapulta me atirasse para ali. Não sei o tempo que decorreu desde que me deitei até que abri os olhos do entendimento para conhecer o padre, e a irmã, e o cirurgião da casa. Pensei que sonhava. O cirurgião punha-me a mão na testa e apalpava-me o pulso. O padre olhava-me com ar de bondade. E dona Antónia pregava os olhos, com ansiedade, na cara do cirurgião. Então que tens, João?, perguntou o mestre em tom amigável. Não sei, senhor padre-mestre, respondi eu, mentindo como convinha. Bateram-te?, disse ele. E eu calei-me, porque não sabia se era conveniente dizer a verdade. Bateram-te, João?, replicou o mestre, descendo a voz à nota baixa da severidade. Quase nada, respondi eu, naturalmente a tremer uma segunda sezão. E o facultativo, que tinha debaixo dos dedos as pulsações do meu sangue, reconheceu a influência patológica que tinham em mim as perguntas do padre». In Camilo Castelo Branco, Mistérios de Lisboa, 1854, Edições Quidnovi, 2010, ISBN 978-989-628-187-8.

Cortesia de Quidnovi/JDACT