quarta-feira, 8 de abril de 2020

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «O caso é que, continuou Jorge, frei Miguel afirmava que só pregaria se ordenasse o sermão com tal arte que nem desse o rei por vivo nem por morto»

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O Sapateiro Santo
«(…) Poderíamos embarcar numa nau para a Índia propôs Jorge...,
ou para a Flandres..., acrescentava Luís. Não antes de..., disse o rei, mas Telo disse: Savachão atalhou, quer mortificar-se mais ainda. Dentro de dias, o cardeal presidirá no mosteiro dos Jerónimos à cerimónia solene..., das minhas exéquias. Pensarão todos que serão de corpo ausente, mas eu quero que sejam de corpo presente... De um sei eu que desconfia disso adiantou Jorge. Quem? Ouvi-o contar há dias a dois frades que pararam junto de mim. O sermão fora encomendado a frei Miguel dos Santos, provincial da ordem dos eremitas de Santo Agostinho... Conheço. Foi pregador de minha avó, a rainha..., suspendeu-se, olhando aos lados, e num sussurro terminou: dona Catarina. Alguém o avisou em segredo: Olhasse como pregava. O rei era vivo e havia de o ouvir. O pregador, enfiado, deu parte a dom Henrique do que passava e que assim não haveria de pregar. O cardeal mandou logo o corregedor Diogo Fonseca tirar devassa do que se por aí diz... Devassa? Andam a tirar devassa? Sim, confirmou João. E parece que não apareceu ninguém que jurasse ter-te visto morrer..., ter visto o rei morrer na batalha..., que não seria fácil conhecê-lo depois de morto, dois dias passados, despido... Ainda vestidos e frescos, eram desconhecidos de pais e de filhos os que acabavam de morrer, quanto mais cobertos de pó, suor e sangue, talhados de feridas, inchados ao ardor do sol, desfigurados... Nem se achara no campo ou em mão de mouros insígnia sua, coisa do seu corpo, fáceis de reconhecer pelas guarnições de armas reais e até nas fivelas dos sapatos...
O caso é que, continuou Jorge, frei Miguel afirmava que só pregaria se ordenasse o sermão com tal arte que nem desse o rei por vivo nem por morto. O cardeal despachou-o e entregou o encargo ao padre Luís Álvares da Companhia de Jesus. Muito me contais, disse Savachão. Por mais que me custe, é meu propósito assistir a essas exéquias. Savachão, disse Telo, folga de remexer na ferida que está a sangrar. Se não quereis assistir, ficai ao largo. Eu assistirei.
Uma noite, pela Betesga saíram a Santa Justa. Zona de tavernas, malandros, rufias e mulheres da vida. Esse rei que tanto admiras, João segundo disse Telo a Savachão, quando príncipe, gostava de se escapar da alcáçova pela calada da noite a ter amores com as rameiras. E rixas, bem sei, disse Savachão. Não o imitei nisso... Olhou o amigo, hesitando em vestir de voz o pensamento. Olhou os outros, que seguiam à frente, distanciados para que o grupo não desse nas vistas, e enfim perguntou: e tu? Alguma vez te escapaste a experimentar amores por estes sítios? Acenou Telo que sim, sem adiantar palavra, lembrado de que o rei, segundo se dizia, ainda não conhecera mulher. Leu-lhe o pensamento Savachão, que desabafou: sempre tive medo de apanhar alguma doença..., o morbo serpentino... A conversa levou Telo a voar a outro lado: e agora? O cardeal como é que... As minhas culpas não têm perdão, disse Savachão. Porque não morri eu? Jorge tinha-se deixado aproximar e ouviu estas palavras. Ainda estás a tempo de tudo remediar, disse.
Não, não!, respondeu Savachão com violência. Já há outro rei alçado sobre a minha morte. Quando Afonso quinto regressou de França ao reino, o príncipe João, que havia sido alçado rei, ajoelhou-se aos pés do pai a restituir-lhe o trono. Não é a mesma coisa. Pode ser, se tu quiseres. Cala-te, cala-te. Deixa-me estar morto. Meu tio há-de pedir ao papa licença, há-de casar e dar herdeiro ao reino, verás... Casar, ele?, disse Telo. Mesmo que o papa conceda a licença das ordens, como poderá ele...? Da sombra de uma esquina surgiram súbito cinco embuçados de negro, as lâminas das espadas a cintilarem ao luar. As vossas bolsas, vá, depressa disse uma voz rouca. Como um raio, Jorge abriu a capa de mendigo, na mão fino sabre desembainhado, a cota de malha a reluzir-lhe no peito: a mim, vilões!, e investia». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT