sexta-feira, 10 de abril de 2020

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Olhem! Ergueu as mãos e mostrou-as. Depois, pousou Arnau no chão e começou a despir-se Olhem!, repetiu, mostrando todo o seu corpo, forte, inteiro e sem mácula, sem uma única chaga ou sinal»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Do alto da serra de Collserola, na antiga via romana que unia Ampurias a Tarragona, Bernat contemplou a liberdade..., e o mar! Jamais vira, nem imaginara, aquela imensidão que parecia não ter fim. Sabia que para além daquele mar existiam terras catalãs, porque assim diziam os mercadores, mas..., era a primeira vez que encontrava algo de que não podia ver o fim. Por detrás daquela montanha... Depois de atravessar aquele rio... Sempre pudera apontar um local, indicar um ponto a um estrangeiro que perguntasse... Mirou o horizonte que se unia com as águas. Permaneceu uns instantes com o olhar fixo na distância, enquanto acariciava a cabeça de Arnau, aqueles cabelos rebeldes que lhe tinham crescido enquanto tinham estado no monte.
Depois, dirigiu o olhar para onde o mar se fundia com a terra. Cinco navios destacavam-se na orla, junto ao ilhote de Maians. Até esse dia, Bernat apenas vira desenhos de barcos. À sua direita elevava-se a montanha de Montjuic, também aflorando o mar; aos seus pés, campos e planícies e, depois, Barcelona. Do centro da cidade, onde se elevava o monte Taber, um pequeno promontório, centenas de construções derramavam-se em redor; algumas baixas, engolidas pelas suas vizinhas, e outras majestosas: palácios, igrejas, mosteiros... Bernat perguntava-se quantas pessoas viveriam ali. Porque de repente Barcelona acabava. Era como uma colmeia rodeada de muralhas, a não ser pelo lado do mar, e para lá das muralhas eram apenas campos. Quarenta mil pessoas, ouvira dizer. Como nos vão encontrar, entre quarenta mil pessoas?, murmurou olhando para Arnau. Serás livre, filho.
Ali poderiam esconder-se. Procuraria a irmã. Mas Bernat sabia que antes disso teria de cruzar as portas. E se o senhor de Bellera tivesse dado a sua descrição? Aquele sinal... Pensara nisso ao longo de três noites de caminho desde o monte. Sentou-se no chão e agarrou numa lebre que caçara com a balestra. Degolou-a e deixou que o sangue caísse na palma da mão, onde tinha um pequeno monte de areia. Remexeu o sangue e a areia, e quando a mistura começou a secar, espalhou-a sobre o olho direito. Depois, guardou a lebre no saco. Quando notou que a pasta estava seca e não podia abrir o olho, começou a descida em direcção ao portão de Santa Anna, na parte mais setentrional da muralha ocidental. Ali pessoas faziam fila no caminho de acesso à cidade. Bernat juntou-se à fila, arrastando os pés, com discrição, sem deixar de acariciar o menino, que já estava acordado. Um camponês descalço e encolhido sob um enorme saco de nabos voltou a cabeça para ele. Bernat sorriu-lhe. Lepra!, gritou o camponês, deixando cair o saco e afastando-se de um salto do caminho. Bernat viu como toda a fila, até à porta, desaparecia para as bermas do caminho, uns para um lado, outros para o outro; afastaram-se dele e deixaram o acesso à cidade pejado de objectos, comida, diversas carroças e algumas mulas. E, no meio de tudo isto, os cegos que costumavam pedir junto ao portal de Santa Anna agitavam-se, por entre gritos.
Arnau começou a chorar, e Bernat viu que os soldados desembainhavam as espadas e fechavam as portas. Vai para a leprosaria!, gritou-lhe alguém de longe. Não é lepra!, protestou Bernat. Espetei um galho no olho! Olhem! Ergueu as mãos e mostrou-as. Depois, pousou Arnau no chão e começou a despir-se Olhem!, repetiu, mostrando todo o seu corpo, forte, inteiro e sem mácula, sem uma única chaga ou sinal. Olhem! Sou apenas um camponês, mas necessito de um médico que me trate deste olho; senão não poderei continuar a trabalhar. Um dos soldados aproximou-se dele. O oficial teve de o empurrar com a espada. Parou a uns passos de Bernat e observou-o. Vira-te, indicou-lhe, fazendo um sinal com os dedos. Bernat obedeceu. O soldado virou-se para o oficial e fez que não com a cabeça. Da porta, com uma espada, fizeram um sinal indicando o vulto que estava aos seus pés. E a criança? Bernat agachou-se para apanhar Arnau. Destapou-o, com a parte direita da cara do menino encostada ao peito, e mostrou-o na horizontal, como se o oferecesse, segurando-o pela cabeça; com os dedos, tapou o sinal. O soldado voltou a fazer sinal que não, olhando para a porta. Tapa essa ferida, camponês, disse-lhe. Caso contrário, não conseguirás dar um passo na cidade.
As pessoas regressaram ao caminho. As portas de Santa Anna abriram-se de novo e o camponês dos nabos recolheu o seu saco sem olhar para Bernat. Este cruzou o portal com o olho direito tapado por uma camisa de Arnau. Os soldados seguiram-no com o olhar, mas agora, como poderia não chamar a atenção, com uma camisa a tapar-lhe metade do rosto? Deixou a colegiada de Santa Anna à esquerda e continuou a andar atrás das pessoas que entravam pela cidade. Virando à direita, chegou à Praça de Santa Anna. Caminhava cabisbaixo... Os camponeses começaram a dispersar pela cidade; os pés descalços, as alcofas e as cestas foram desaparecendo e Bernat deu consigo a olhar para umas pernas cobertas com meias de seda de cor vermelha como o fogo e que terminavam nuns sapatos verdes de tecido fino, sem sola, ajustados aos pés e terminados em ponta, com um bico tão longo que dele saía uma correiazinha de ouro que se abraçava ao tornozelo.
Sem pensar, levantou o olhar e deparou com um homem usando um chapéu largo. Exibia uma veste negra debruada com fios de prata e ouro, um cinturão também bordado a ouro e colares de pérolas e pedras preciosas. Bernat ficou a olhar para ele de boca aberta. O homem virou-se para o jovem, mas dirigiu o olhar para mais além, como se ele não existisse. Bernat titubeou, tornou a baixar os olhos e suspirou aliviado, ao ver que o outro não lhe prestara a menor atenção. Percorreu a rua até à catedral, que estava em construção, e pouco a pouco começou a levantar a cabeça. Ninguém olhava para ele. Durante um longo momento ficou a observar como trabalhavam os peões da sé: picavam pedra, deslocavam-se pelos altos andaimes que a rodeavam, levantavam enormes blocos de pedra com polés... Arnau reclamou a sua atenção com um ataque de choro. Bom homem, disse a um operário que passava perto dele, como posso encontrar o bairro dos oleiros? A sua irmã, Guiamona, casara com um deles. Segue por esta mesma rua, respondeu-lhe o homem, apressadamente, até que chegues à próxima praça, de Sant Jaume. Aí verás uma fonte; vira à direita e continua até chegares à muralha nova, ao portão da Boquería. Não saias para o Raval. Prossegue junto à muralha em direcção ao mar até ao portão seguinte, o de Trentaclaus. Aí fica o bairro dos oleiros». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT