quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Estudos sobre a “Arte D’Os Lusíadas. Ensaios. António José Saraiva. «… em vários passos d'Os Lusíadas aparece como forma alternativa do presente, como se não houvesse qualquer diferença temporal entre um presente referido a hoje e um presente referido a ontem»

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Ensaios
«(…) Normalmente, Camões não usa n'Os Lusíadas o tempo verbal narrativo. Quase todos os episódios do Poema são referidos no presente, como se se estivessem desenrolando à vista do leitor. Releia-se o texto:

E vereis ir cortando o salso argento
os vossos Argonautas, por que vejam
que são vistos de vós […]

O Gama e os seus companheiros cortando o mar em 1497 estão a ser vistos em 1572. E o primeiro episódio do Poema é mostrado ao rei nos seguintes termos:

Já no largo Oceano navegavam,
[...]
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
onde o governo está da humana gente,
se ajuntam em concílio glorioso,

Este se ajuntam e este navegavam marcam, desde o início da narração, o tempo, ou, antes, o não-tempo em que ela é relatada. Quanto ao uso do presente, não são necessários muitos comentários. Mas é interessante notar que ele é usado não apenas para referir acções que são passado em relação ao Autor e ao destinatário da mensagem (mas que podem supor-se estarem a ser vistas por eles actualmente), mas que também o são relativamente aos protagonistas da história.
No canto VI, como se sabe, assistimos à grande tempestade e à intervenção das Nereidas que a apazigua; após isto, os nautas avistam, na manhã clara, terra da Índia. Camões faz aqui uma longa pausa na narrativa, com considerações e uma famosa exortação aos povos da cristandade, após o que retoma no canto VII o fio da história. Nestes termos:

E vejamos, entanto, que acontece
àqueles tão famosos navegantes,
despois que a branda Vénus enfraquece
o furor vão dos ventos repugnantes,
despois que a larga terra lhe aparece,
fim de suas perfias tão constantes,
onde vem semear de Cristo a lei
e dar novo costume e novo Rei.

O primeiro verso desta estrofe denota a atitude já nossa conhecida de chamar a atenção para a acção em curso: vejamos o que. acontece. Está dentro do tempo (ou não-tempo) iniciado com a primeira estrofe da narração. Do mesmo modo vêm no verso 7. Mas enfraquece e aparece referem-se a uma acção já narrada e cuja conclusão é necessária para a acção que vai seguir-se. Neste momento, a costa da Índia já apareceu e Vénus já amainou ou enfraqueceu a tempestade. Este uso do presente para denotar um acontecimento já referido na narrativa, depois que acontece, despois que enfraquece, repugna violentamente à gramática da língua, e por isso mesmo é muito significativo de uma tendência constante em todo o Poema.
Quanto ao uso do imperfeito (que não é um tempo narrativo, mas denota um presente inactual), o que há de mais interessante a assinalar é que em vários passos d'Os Lusíadas aparece como forma alternativa do presente, como se não houvesse qualquer diferença temporal entre um presente referido a hoje e um presente referido a ontem. Exemplo disso são as duas estrofes seguintes do justamente célebre episódio em que Vénus atravessa, correndo, o Olimpo:

Os crespos fios d'ouro se esparziam
pelo colo que a neve escurecia;
andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
com quem Amor brincava e não se via.
Da alva petrina flamas lhe saíam,
onde o Minino as almas acendia.
Polas lisas colunas lhe trepavam
desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre
de quem vergonha é natural reparo;
porém nem tudo esconde nem descobre
o véu, dos roxos lírios pouco avaro;
mas, pera que o desejo acenda e dobre,
lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

In António José Saraiva, Estudos sobre a Arte D’Os Lusíadas, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-476-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT