quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Poesia. Máscaras. Orlando Neves. «No Jardim, Idomeneu ensina a ataraxia a serenidade a paz íntima a fuga a todos os excessos a ausência de desespero a separação total dos deuses»

jdact

Balnibarbi
O grande sábio da academia de Lagado
mandou que os 40 alunos rodassem
o gigantesco quadro de cubos.
Nos seis lados de cada estavam inscritas
todas as palavras de todas as línguas.

Gulliver leu, de relance:
tenebrae abba sef'r bil love dun
thanks morte akrós atman eco
pesach dálet bild ga-hlaiba veld
yhnhnm amor figlio rlm arbeit son
psyke duomo kome fête gaia

Outra vez! Comandou o grande sábio balnibarbiano.

Mare solo noon thwahila tear virtú
proskénion mulier destino parole
adonai festa palavra goró abelós
force dike baro ghost kalk wealth

Ininterruptamente, nas 24 horas do dia,
os jovens rodavam as fiadas de cubos
e iam anotando todas as palavras.
Alguma vez, disse o grande sábio de Balnibarbi,
elas surgirão ordenadas e formarão
as mais belas frases poéticas.
Gulliver saiu enquanto o movimento
continuava, pausado, cadenciado:

pathós moon dieu light esclave hybris dor bit

Morte de Epicuro
A vida (maior) do que a morte,
abandona Epicuro.
A dor apodrece-lhe o ventre.
Milhões de átomos,
caindo no vazio,
destroem-lhe o equilíbrio do corpo vivo.
Sabe que os deuses sempre desconheceram
a sua existência humana.
Encontrará na natureza,
enfim, o repouso e a paz.

a = privação
taraxis = agitação

Jesus mortifica-lhe o cadáver,
propõe-lhe a vida para além da morte.
Mas Epicuro é indiferente ao futuro,
nada lhe diria o supremo prazer de Jesus,
a outra vida.
Enquanto os rins se decompõem
ainda o filósofo sabe
que a outra vida
a viveu na terra.
Agora, que sofre a dor física,
repercutida na alma,
reafirma o prazer como seu contrário.
No Jardim,
Idomeneu ensina
a ataraxia
a serenidade
a paz íntima
a fuga a todos os excessos
a ausência de desespero
a separação total dos deuses.

Achando-me no feliz e último dia de vida,
eis-me definitivamente escondido
no seio da natureza. Jamais morrerá
a pulsação do mundo pelo prazer.
Por favor, Idomeneu,
deixa que as moscas devorem,
serenas,
meu vómito negro.

Teresa Cruz lê Teresa de Ávila no museu Grão Vasco
Viseu gela nos vidros vazios, brancos.
Uma chuva de lâminas agrestes marca o
rosto da Virgem de Grão Vasco. Suponho
a vida rápida. Porém o tempo nas pala-

vras filtra os suplícios da carne que
nas telas se consome. E o teu Deus não
cala o grito dos mártires ecoando nas
cores. Porque rezam as bocas de velhas

nestes quadros em que parecem ruir os
Cristos brilhantes que penetram o teu
corpo? E estes duques de joelhos de pra-
ta, em tons de chumbo, que choram conti-

go em calvários pintados? Passas, lenta,
nos claustros, por tapetes sanguíneos,
os teus passos rasos. Correm galgos re-
ais nos campos para além do convento.

Ágeis, erectos, ávidos. Foges ao tiro da
caça, entre desenhos e estalos de óleo,
ruínas de som. O caos perfura os teus
seios virgens e a água do suor dissol-

ve-te a pele. E, incerta, a tua voz mur-
mura o nome do crucificado. Em teus ca-
belos ácidos, secos de luz, sinto-me i-
nundada de ti, vejo a cruz sombria, le-

vantada como um falo, esmagando a aze-
da flor que beijas. Nas tuas palavras
eis a parte das águas que me lava das
pestes. Não me curaram. Não me ressusci-

taram. Mas são como a estrela da tela,
desvendando a infância na alva do nas-
cimento divino. Os teus terrores e eni-
gmas têm estas cores castanhas e plúm-

beas. Mas foram as minhas janelas de o-
lhar o meu corpo, ardente como a memó-
ria do amado amante. Ó asa clara e ne-
gra sobre as chagas pintadas do Cris-

to, aquece-me de amor nesta cidade am-
bígua, campo soterrado de gelo e chama!

Poemas de Orlando Neves, in ‘Máscaras

In Orlando Neves, Máscaras, edições Sol XXI, Tipografia Voz de Lamego, 1997, ISBN 972-8183-52-6.

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