«(…) Mas o lugar e o papel dos bastardos reais foram bastas vezes fonte
de problemas e conflitos, que chegaram a provocar verdadeiras guerras civis,
como sucedeu no reinado do monarca Dinis I. E, mesmo quando não se chegou a
tais extremos, os filhos ilegítimos dos reis de Portugal prejudicaram muitas
vezes o prestígio e a autoridade da monarquia. Os bastardos reais eram, como
António Caetano Sousa sublinha na sua História Genealógica da Casa Real Portuguesa,
escândalo do matrimónio;
representavam uma afronta à rainha consorte; e constituíam uma ameaça aos
filhos dela nascidos. Em suma: punham em causa a ordem constitucional vigente. É
verdade que esses bastardos deviam ao
seu sangue determinadas prerrogativas, como notou Georges Duby. Por
serem ilegítimos, não deixavam de ter sido gerados por reis, tendo por isso de
ser honrados adequadamente, como o autor da História Genealógica
também sublinhou. E Pascoal Melo Freire chegou mesmo a escrever que, em
Portugal, era pequena a diferença
entre os filhos legítimos e os filhos bastardos dos reis; com efeito, todos se
chamam por direito filhos do rei visto que de reis foram procriados. Por
isso, aliás, desde o início do reino
[os bastardos] sempre foram tidos em grande honra, precedendo em dignidade os Grandes e Magnates do
Reino.
Mas, como Pascoal Freire também sublinhou, aos filhos legítimos dos
reis pertenciam alguns direitos principais,
que todas as leis, incluindo as nossas, denegam aos bastardos. Estes, situando-se
num plano inferior, naquele patamar intermédio em que José
Augusto Pizarro os colocou, não mereciam, por exemplo, o título de Infante
nem por direito sucediam a seu pai no trono, mesmo quando tinham o tratamento
de Altezas, como sucedeu, por exemplo, com os bastardos de João V. A este
respeito, António Caetano Sousa foi claro e peremptório:
- Os filhos que os Reis têm fora do matrimónio não logram o carácter de Infantes, não só no nosso Reino nem nos outros de Espanha nem em tempo algum tiveram essa prerrogativa, como se vê das Escrituras, Doações e Privilégios rodados que assinavam junto com os Reis e Infantes, para o que não é necessário produzir exemplos, por ser matéria sem controvérsia para os que são professores de História; e para os que são curiosos somente faço esta advertência para que se não embaracem quando lerem em alguns Autores tratarem de Infantes aos ilegítimos.
Não parece verdade que, nesta matéria, a situação portuguesa fosse
exactamente igual à dos outros reinos de Espanha. Salvo melhor opinião e
investigação mais aprofundada, os bastardos reais de Castela não sofriam as mesmas
limitações que os portugueses. Pode ser que não tivessem, como os nossos não
tinham, o carácter de infantes. Mas gozavam de direitos sucessórios bem mais amplos
do que os nossos. Podiam nomeadamente herdar a coroa e suceder no trono, o que
entre nós, como já se disse, estava vedado aos filhos ilegítimos dos reis. Com
efeito, se Henrique de Trastâmara, bastardo de Afonso XI, acedeu ao trono
castelhano por sucessão, João, Mestre de Avis, bastardo do
rei Pedro I, só chegou ao trono português por eleição. É toda uma diferença. Cumpre aliás notar que, para ganhar essa
eleição, o admirável João das Regras assentou a sua defesa de João I na
afirmação de que todos os candidatos ao trono vagante por morte do monarca Fernando
I eram bastardos, e que, por isso, nenhum tinha direito a suceder ao rei Formoso.
Em França, a sucessão da coroa também estava vedada aos bastardos
reais. Mas Luís XIV resolveu, a certa altura, mudar as regras do jogo,
concedendo aos filhos havidos fora do seu casamento o tratamento de Altezas
Sereníssimas e, depois, o direito de sucessão ao trono por extinção da
descendência legítima. Caíram o Carmo e a Trindade. E
Saint-Simon, recordando o escândalo, escreveu nas suas Memórias páginas carregadas
de indignação. O mais poderoso monarca do seu tempo foi forçado a dar o dito
por não dito. E os bastardos do Rei-Sol perderam o direito de suceder ao trono
de seu pai. É de notar que o exemplo francês teve algumas repercussões em
Portugal, onde os filhos ilegítimos de João V, os famosos Meninos de Palhavã, tiveram tratamento de Altezas, que os
bastardos de Pedro II também receberam. Mas o Corpo Diplomático então
acreditado em Lisboa nunca assim os tratou, invocando justamente uma lei do rei
Magnânimo, datada de 1720, que reservava esse tratamento aos
infantes. Mas infantes é que os Meninos
não eram». In Isabel Lencastre, Bastardos Reais, Os Filhos Ilegítimos dos Reis de
Portugal, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-845-2.
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