quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «A doutrina mutazilita propagou-se nos finais do século VIII e início do IX sob os governos dos califas abácidas al-Mansur (754-775), Harun al-Rasid (808-813) e al-Mamun (833-842). Este último proclamou o mutazilismo doutrina oficial»

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O Advento dos Mutazilitas
«(…) A divulgação dos clássicos gregos atraiu ao estudo da lógica e da filosofia alguns muçulmanos ávidos de cultura. Começaram então as primeiras tentativas de conciliar o pensamento grego com a religião muçulmana. É neste horizonte que surge a primeira tentativa de expressão filosófica, uma escola de dissidentes, os Mutazilitas cujas gerações se prolongaram de Wasil b. Ata (+748) a Abd al-Yabbar (+1025). Os termos kalam e mutakillim significam respectivamente palavra e aquele que fala. Rapidamente passaram a designar a ciência da teologia e o teólogo. O uso da razão, a afirmação do pensamento filosófico emergem do terreno da teologia… No Catálogo das Ciências, Al-Farabi descreve o kalam, o alfaqui e o mutakilim. “A arte do kalam, escreve Al-Farabi, é uma propriedade pela qual o homem pode defender os dogmas e os actos através dos quais honra a Deus e obtém o ordenamento das cidades, exigidos pelo fundador da religião, e condenar tudo o que se oponha a eles por meio de raciocínios…
O alfaqui aceita sem exame os dogmas e as operações prescritas pelo fundador da religião e toma-os como princípios para poder deduzir deles as coisas obrigatórias em religião. O mutakallim defende as coisas que o alfaqui toma como princípios sem que deduza delas outras coisas novas. Alguns mutakallums opinam que não é possível submeter à crítica das ideias, das opiniões e raciocínios humanos os dogmas das religiões e todos os seus preceitos porquanto são de um grau superior, pois estão tomados de uma causa divina e há neles mistérios divinos que a razão humana, por sua debilidade, não é capaz de perceber e alcançar. Outro grupo de mutakallim crê que, para a defesa da religião, se devem fixar primeiro todos os dogmas que o fundador impôs, com as mesmas palavras com que este as expressou; depois, a outro lado, estudar a fundo as teses que constam pelo testemunho dos sentidos, pela opinião geralmente admitida e pelo dictâmen da razão. E o que destas verdades e de suas consequências lógicas encontrem testemunhando, ainda que de longe, algum dogma da religião, devem defender com elas esse dogma. Para o que nelas encontrem de contraditório com algum dogma da religião, podem interpretar-se metaforicamente as palavras com as quais o fundador da religião expressou aquele dogma de modo que se harmonize aquela contradição. E ainda que seja inverosímil, interpretam-no assim.
Estes últimos, os Mutazilitas, confessavam a necessidade da interpretação alegórica do Corão e da Suna sempre que houvesse contradição com a razão. A razão humana pode concordar-se com a fé desde que se conceba uma potência espiritual como fundamento de toda a realidade mas é impossível racionalmente ir para além disto. Colocado este princípio, os Mutazilitas negavam a eternidade do Corão, declaravam que o homem não podia conhecer a natureza e os atributos reais de Deus e que a predestinação era fatal para a moral e a iniciativa humana. Os muçulmanos deviam admitir a criação do Corão no tempo, acreditar no livre arbítrio e na impossibilidade de conceber Deus sob o ângulo do antropomorfismo. Para o mutazilita oriental al-Asari (874-935), que se converteu depois à ortodoxia, Deus é único, nada é semelhante a ele: não é corpo nem indivíduo nem substância. Está por cima do tempo. Não pode habitar num lugar ou num ser. Não é objecto de nenhum dos atributos ou qualificativos aplicáveis às criaturas. Não está condicionado nem determinado; não engendra nem é engendrado. Por outro lado, o princípio da justiça divina implica a liberdade e responsabilidade do homem. A doutrina mutazilita propagou-se nos finais do século VIII e início do IX sob os governos dos califas abácidas al-Mansur (754-775), Harun al-Rasid (808-813) e al-Mamun (833-842). Este último proclamou o mutazilismo doutrina oficial. No Andaluz, o mutazilismo foi introduzido por Abd Allah b. Masarra (+899), pai do filósofo Ibn Masarra, mas Averróis escreveria que, no seu tempo, não tinha encontrado livros de mutazilitas. A doutrina sunita chegou cedo ao Andaluz mas as ideias heterodoxas e os pensamentos dos filósofos demoraram a chegar.

Filósofos Orientais
A especulação filosófica, fecundada num imenso e contraditório caldo de culturas, inicia-se no Islão oriental no século IX e dá os primeiros passos no Ocidente com Ibn Masarra no século X. A Oriente atinge o seu esplendor máximo no século XI e a Ocidente, no Andaluz, nos séculos XI e XII». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de I.Camões/JDACT