O Advento dos Mutazilitas
«(…) A divulgação dos
clássicos gregos atraiu ao estudo da lógica e da filosofia alguns muçulmanos
ávidos de cultura. Começaram então as primeiras tentativas de conciliar o pensamento
grego com a religião muçulmana. É neste horizonte que surge a primeira
tentativa de expressão filosófica, uma escola de dissidentes, os Mutazilitas cujas gerações se
prolongaram de Wasil b. Ata (+748) a Abd al-Yabbar (+1025).
Os termos kalam e mutakillim significam
respectivamente palavra e aquele que fala. Rapidamente passaram a
designar a ciência da teologia e o
teólogo. O uso da razão, a
afirmação do pensamento filosófico emergem do terreno da teologia… No Catálogo das Ciências, Al-Farabi
descreve o kalam, o alfaqui
e o mutakilim. “A arte do
kalam, escreve
Al-Farabi, é uma propriedade pela qual o homem pode defender os dogmas e os
actos através dos quais honra a Deus e obtém o ordenamento das cidades,
exigidos pelo fundador da religião, e condenar tudo o que se oponha a eles por
meio de raciocínios…
O alfaqui aceita sem exame os dogmas e as operações prescritas
pelo fundador da religião e toma-os como princípios para poder deduzir deles as
coisas obrigatórias em religião. O mutakallim
defende as coisas que o alfaqui toma como princípios sem que deduza delas
outras coisas novas. Alguns mutakallums
opinam que não é possível submeter à crítica das ideias, das opiniões e
raciocínios humanos os dogmas das religiões e todos os seus preceitos porquanto
são de um grau superior, pois estão tomados de uma causa divina e há neles mistérios
divinos que a razão humana, por sua debilidade, não é capaz de perceber e
alcançar. Outro grupo de mutakallim crê que, para a defesa da religião,
se devem fixar primeiro todos os dogmas que o fundador impôs, com as mesmas
palavras com que este as expressou; depois, a outro lado, estudar a fundo as
teses que constam pelo testemunho dos sentidos, pela opinião geralmente
admitida e pelo dictâmen da razão. E o que destas verdades e de suas
consequências lógicas encontrem testemunhando, ainda que de longe, algum dogma
da religião, devem defender com elas esse dogma. Para o que nelas encontrem de
contraditório com algum dogma da religião, podem interpretar-se metaforicamente
as palavras com as quais o fundador da religião expressou aquele dogma de modo
que se harmonize aquela contradição. E ainda que seja inverosímil,
interpretam-no assim.
Estes últimos, os Mutazilitas,
confessavam a necessidade da interpretação alegórica do Corão e da Suna
sempre que houvesse contradição com a razão. A razão humana pode concordar-se
com a fé desde que se conceba uma potência espiritual como fundamento de toda a
realidade mas é impossível racionalmente ir para além disto. Colocado este princípio,
os Mutazilitas
negavam a eternidade do Corão, declaravam que o homem não podia conhecer
a natureza e os atributos reais de Deus e que a predestinação era fatal para a moral
e a iniciativa humana. Os muçulmanos deviam admitir a criação do Corão
no tempo, acreditar no livre arbítrio e na impossibilidade de conceber Deus sob
o ângulo do antropomorfismo. Para o mutazilita oriental al-Asari (874-935),
que se converteu depois à ortodoxia, Deus
é único, nada é semelhante a ele: não é corpo nem indivíduo nem substância. Está
por cima do tempo. Não pode habitar num lugar ou num ser. Não é objecto de
nenhum dos atributos ou qualificativos aplicáveis às criaturas. Não está
condicionado nem determinado; não engendra nem é engendrado. Por outro
lado, o princípio da justiça divina implica a liberdade e responsabilidade do
homem. A doutrina mutazilita propagou-se nos finais do século VIII e
início do IX sob os governos dos califas abácidas al-Mansur (754-775),
Harun al-Rasid (808-813) e al-Mamun (833-842). Este último proclamou o mutazilismo
doutrina oficial. No Andaluz,
o mutazilismo
foi introduzido por Abd Allah b. Masarra (+899), pai do filósofo Ibn Masarra,
mas Averróis escreveria que, no seu tempo, não tinha encontrado livros
de mutazilitas. A doutrina sunita
chegou cedo ao Andaluz mas as
ideias heterodoxas e os pensamentos dos filósofos demoraram a chegar.
Filósofos Orientais
A especulação
filosófica, fecundada num imenso e contraditório caldo de culturas, inicia-se
no Islão oriental no século IX e dá os primeiros passos no Ocidente com
Ibn Masarra no século X. A Oriente atinge o seu esplendor máximo no século XI e
a Ocidente, no Andaluz, nos
séculos XI e XII». In António Borges Coelho, Tópicos
para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus,
Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN
972-566-205-9.
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