terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «Com efeito, a ‘discórdia’, que afecta a gestão régia de Sancho II, um assalto da aristocracia, é ampliada pela contestação desenvolvida por outras estruturas da sociedade portuguesa coeva»

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«(…) Na Península Ibérica, os reinos cristãos em expansão são um excelente laboratório para estas modificações. As novas ideias, trazidas para a corte portuguesa por eclesiásticos licenciados em universidades europeias serão decisivas no desenvolvimento e aplicação das políticas centralizadoras de monarcas como Afonso II, Sancho II e Afonso III. O velho sistema medieval tinha grande dificuldade em assistir impassível e em assimilar as novas transformações que rodeavam o modelo de poder. Conhecemos o século XIII como o período onde o Direito se desenvolveu na Europa medieval. Estava em causa um novo conceito de poder, suportado por um quadro legislativo específico e bem construído. Cada vez mais se tornava difícil a existência de perspectivas diferenciadas sobre os sistemas políticos e a sua governação como acontecera anteriormente. Não havia lugar para a tolerância e para a harmonização de pensamentos diferenciados. Assim se passava com a Igreja, onde os pensamentos dissonantes eram catalogados como heresias. Assim era com a laicização do Estado. A definição do Estado e dos seus direitos, o novo modelo de organização política e social fazia com que muitos fossem forçados a escolher entre serem leais ao Estado ou à Igreja. A definição dos poderes do soberano e o desenvolvimento de modelos teóricos que enquadravam uma nova realidade política forçavam naturalmente a essa escolha.
O retrato da Península Ibérica durante a primeira dinastia portuguesa é bem vincado pela ameaça constante do poder militar muçulmano, o que obrigou a um estado de guerra permanente, onde o rei se torna no chefe militar incontestado, coordenador máximo da guerra contra um inimigo comum, ao mesmo tempo que líder político cada vez mais enraizado e determinante na acção política dentro do seu território. Senhor, por direito próprio, do esforço da Reconquista, acção fortalecedora do poder da Coroa, o rei português, contudo, viveu ao longo de todo o século XIII, momentos difíceis, motivados por contestações, mais ou menos explicitas, dos grupos nobiliárquicos e de outros sectores da sociedade portuguesa, que desde o governo de Afonso I, se perfilam contra a monarquia. Quando no ano de 1223, Sancho II, sobe ao trono, esta contestação estava, mais do que nunca, activa. Do conjunto de fontes e informações, ideologicamente bem corporizadas, que até nós chegaram, percebe-se a existência de uma forte crise política, institucional e social ao longo de todo o seu reinado, resultado de opções mais centralizadoras desenvolvidas por seu pai, Afonso II e que a incapacidade funcional de Sancho II parece acentuar.
Conhecimento mais profundo e detalhado da dinâmica das relações políticas entre o Centro, o rei, o espaço detentor do poder e as periferias que o compõem, complementam e estimulam. Neste enquadramento interessa-nos o comportamento entre essas realidades, por exemplo, entre a nobreza e o rei, nomeadamente a tipologia de funções curiais que a primeira desempenhava, juntamente com uma sistemática observação sobre o fenómeno de patrimonialização dos cargos administrativos realizado pela aristocracia portuguesa. Como a constituição e afirmação do grupo nobiliárquico, nos seu expoentes político e económico, se encontra directamente com a formação do próprio poder régio, a Crise que abalou o País durante o reinado de Sancho II certamente se relacionará com alterações produzidas no quadro das relações entre a nobreza e o rei, e entre este e outras instituições imbuídas de poder e que formam o conjunto do reino. Mas não é apenas no processo institucional das relações entre os nobres e a Coroa que se vislumbra a perturbação sistemática do processo político em curso. Com efeito, a discórdia, que transversalmente afecta a gestão régia de Sancho II, e que se traduz por um assalto da aristocracia, em luta entre si, contra a instituição monárquica, é ampliada pela contestação desenvolvida por outras estruturas da sociedade portuguesa coeva. Tal contestação é bem expressa no descontentamento progressivo do clero e nas reclamações por justiça, a um rei que parece incapaz de a assegurar, por parte dos representantes das estruturas municipais portuguesas. São bem evidentes estas queixas e perturbações no espólio de documentos que o reinado de Sancho II produziu, transmissores sintomáticos de uma profunda crise política, institucional e social em que o País mergulhou e onde a monarquia se debate». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT