Maio
«Parece-me, às vezes, que se riem uma com a outra, por cima do meu ombro,
que já estão as duas ao corrente, fazendo de conta que não. Mas, pode lá ser!
Bem sei que estas tipas são diferentes da gente: têm outras concepções de vida,
como elas dizem, são mais evoluídas... Ora, se assim for, que se lixe a moral:
melhor para mim que menos trabalho tenho a esconder... Acordei, uma destas
noites, na minha cama, ao lado da minha mulher, a sentir-lhe o calor do corpo
encostado ao meu, toda enroscadinha, como costuma dormir, e juro que já nem
sabia, cheirando-lhe a pele e o cabelo, em que cama estava nem que fêmea era
aquela. Deixei-a sossegada porque embirra que a acorde, a menos que seja por
causa do petiz, e fiquei-me a olhá-la, a imaginar o que seria se ela
descobrisse. Dormia a sono solto e o que mais espécie me fez foi a sensação de
uma distância enorme entre nós. Que criatura era aquela, agora que não podia
fingir, que talvez nem soubesse o
próprio nome, nem que tinha por si as leis do matrimónio, o direito de gritar
comigo, de me exigir dinheiro?...
Aquele corpo quieto e estranho, respirando com tanta calma e indiferença, não
batia certo com a imagem (quantas mais vezes triste e zangada do que mansa) da
minha mulher de todos os dias e do todas as noites. Tinha um ar mesmo doce e razoável,
como no tempo em que nos namorávamos. Ora nestes últimos anos estou avezado a
vê-la sempre a reclamar. Até desconfio que só de sonhar ouvir-me os passos deixa
logo cair o riso da boca. É para eu ver, é para meu castigo, como se fosse minha
a culpa de esta porcaria de ofício não dar mais. Sim, porque esta chateação
permanente, estas trombas que ela arranja em minha honra, é tudo por causa da
falta de dinheiro.
Agora o Luisinho, Deus me valha, isso é que não é caso para brincadeiras.
Se o rapaz está doente, nem que eu vá buscá-lo às profundas do inferno! Bem sei
que me tenho descuidado. Convencido de que não havia de ser nada... Também em
miúdo fui assim fraquito. Mas, se é a sério, então espera lá! Talvez ele necessitasse
de ir para a serra. Ou de melhor comida. Que a gente, os mais dos dias, bastam-nos
uns nabos com feijão. E ele não se contenta com pouco. Está a crescer, tem de
criar forças. Raio da minha vida! E pensar que bebo uma imperial à minha
conta quase todos os dias no café. E que desde que ando com estas
marmanjas… Mas a coisa vai mudar, oh, se vai! Paga quem pode para quem precisa.
Levantei-me com jeitinho, para não destapar a Marta, que, mesmo no Verão,
bota ainda em cima da roupa mais dois cobertores de lã, do lado dela, já se vê,
e fui, pé ante pé, até à caminha do meu Luís. Piegas! Quem diria, quando me ouvem
no barbeiro a enfiar palavrões uns aos outros e a achincalhar todas as gajas
que passam, como os outros fazem (depois até me envergonho dessas bacoradas),
quem há-de supor que me ajoelho assim diante do meu ,filho a dormir, como se
estivesse em adoração, e que lhe beijo as mãos devagarinho, tão devagarinho que
ele mal estremece?!...
Quando as tipas me entraram pelo carro adentro, sem mais nem mais, a
atirar com as portas, que já andam a pedir conserto, e a professora começou a
olhar-me para os dentes, como a um muar na feira, e a dar-me ordens, naquele
espanhol do catorze que ela está convencida de que é português … queremos ir a la playa de Armaçón. Agora
mismo. Você queda todo el dia por nuestra conta, quase que as mandava
àquela parte, apesar da necessidade que tenho de viver. Então isto aqui é a casa da Joana, ou quê?! O que valeu é
que a mais nova em tão gira, a cabrona, com aquele ar seriozinho e os olhos
postos em mim, muito quietos, com umas rugazinhas muito queridas! Verdes até
demais, olhos de sereia, assim com a água clara que a gente vê da borda das chatas,
quando vamos a remar pelo meio das rochas...» In Urbano Tavares Rodrigues, Imitação
da Felicidade, Publicações Europa-América, Mem Martins, colecção Século XX,
1988.
Cortesia de PEA/JDACT