segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Pedro Lembrando Inês. Poesia. Nuno Júdice. «Então, os santos pegam nas tesouras e começam a tosquia das nuvens. Lá em baixo, nos prados onde as almas se juntam, começa a chover…»

jdact
 
Pedro, Lembrando Inês

Variação sobre rosas
Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama-se no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Beatitude
No paraíso, na idade de ouro,
ouvindo os anjos tocarem alaúde
e flauta, as nuvens acorrem
como ovelhas
à sua beira. Então, os santos
pegam nas tesouras e começam
a tosquia das nuvens. Lá
em baixo, nos prados onde as almas
se juntam, começa a chover: e como
já não haverá guarda-chuvas,
na idade do ouro,
as almas constipam-se,
amaldiçoando
as ovelhas, as nuvens
e os santos. Só os anjos, continuando
a tocar se riem, beatíficos, ouvindo
o bater da chuva
por entre o espirrar
das almas.

Poemas de Nuno Júdice, in ‘Poesia: Pedro, Lembrando Inês

In Nuno Júdice, Pedro Lembrando Inês, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, 2009.

Cortesia de DQuixote/JDACT