A Chegada dos Cristãos. O Refluxo do Islão Espanhol
«(…) 1050. Já1á vão mais de
trezentos anos e um país completamente transformado. A Espanha é muçulmana; ou
antes, os dois terços meridionais da Espanha, a sul de uma linha que vai de
Lisboa a Navarra. A norte, a Espanha fria, húmida, miserável, abandonada aos
cristãos que, com guarnições e expedições periódicas, operações de polícia e de
pilhagem bem como militares, se instalaram nas montanhas do lado de lá de uma
vasta no man's land quase vazia, que garante a segurança de Al-Andalus, a Espanha meridional,
rica, povoada e cultivada. Entre as duas, uma fronteira militar juncada de cidades
fortificadas: Badajoz, Toledo, Saragoça; complementada por uma estrada,
que permite aos exércitos que sobem do sul socorrer rapidamente qualquer ponto
ameaçado. Al-Andalus é, antes
de tudo, uma civilização agrícola, uma agricultura rica, onde a irrigação, as
culturas hortícolas e os pomares parecem desempenhar um grande papel; é também
uma civilização urbana onde a tradição árabe fez reviver as cidades quase
mortas dos visigodos: Córdova, em primeiro lugar a capital, admirada pelos viajantes; Sevilha, a mercantil, Almeria, Granada,
Valência, Saragoça e Toledo, reduzida a um papel de
segundo plano mas que faz grande figura se comparada com os pobres povoados do
país cristão... Al-Andalus é o
comércio, com os Francos amantes de ouro e de produtos de luxo, mas sobretudo
com Túnis, com Alexandria. Al-Andalus,
enfim, é para os cristãos do norte, o país da prata e do ouro, o país onde
circulam os dinares, essas moedas que têm o peso da lei cujo uso a Europa quase
perdeu.
Todavia, nem tudo é fácil na Espanha muçulmana, a começar pela
sociedade que carece de homogeneidade. O Islão é tolerante e não obrigou os
cristãos a converterem-se. Na religião muçulmana, o clero exerce o seu
ministério, os mosteiros funcionam, ensina-se teologia, especula-se sobre as
relações entre o Filho e o Pai, e o culto continua... É certo que sem poder
manifestar-se no domínio público. Mas o estatuto jurídico do cristão coloca-o
num estado de inferioridade flagrante: paga um imposto especial, não tem
direito a casar com uma muçulmana, e estão sempre prontos a declará-lo convertido,
ao mínimo sinal que dê, sem possibilidade de arrependimento. Salvo raras
excepções, são sobretudo os postos de comando que lhe são vedados. Por outro
lado, as conversões são numerosas, e a comunidade cristã enfraquece todos os
dias. Em breve chegará o tempo em que os cristãos do sul, apanhados entre uma
vaga fundamentalista muçulmana e a expansão dos seus correligionários do norte que
lhes chamam, talvez com desprezo, moçárabes,
vão ter de renunciar à sua especificidade. Entretanto, sentem-se cada vez mais constrangidos
e, quando podem, emigram para as terras cristãs.
O mesmo não se poderia dizer dos judeus. São numerosos, sobreviventes
das perseguições visigóticas ou imigrantes vindos um pouco de todo o lado,
atraídos pela tolerância que lhes é demonstrada e pelo crescimento das cidades.
O seu estatuto é semelhante ao dos cristãos, e o seu papel aumenta na
administração. Em certos Estados, no século XI, alguns deles desempenharão o
papel de verdadeiros primeiros-ministros. O direito coloca o muçulmano no
vértice da pirâmide social e a prática ainda mais. Pois, parafraseando o título
de uma obra célebre, os árabes
invadiram mesmo a Espanha. Vieram em grande número, em muito maior
número do que outrora se imaginava, da longínqua Arábia e do Norte de África (ainda
se faz a distinção entre árabes e berberes). Os convertidos de origem
cristã, que estão colocados numa posição inferior à dos muçulmanos de origem,
fizeram o resto. O Islão é maioritário. Mais ainda, a cultura é muçulmana: a
organização social, os modelos familiares, as estruturas de pensamento são
muçulmanas. Também o árabe é a língua
das ciências e das artes; ciências e artes que, desde o século X, brilham nas
cortes e nas cidades. As artes plásticas, a arquitectura,
desenvolveram-se e oferecem monumentos que entraram no
património universal, como a grande mesquita
de Córdova; a poesia, na mais pura tradição
oriental, produz obras-primas. O pensamento especulativo experimenta um impulso
notável nas escolas jurídicas, e até, sob o grande al-Hakam II, que
reúne em Córdova, na segunda metade do século X, uma magnífica biblioteca, as matemáticas
e a astronomia». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII,
Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância,
Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT