«A atenção crescente que às figuras do príncipe e do cortesão foi sendo
dada ao longo do século XV e na primeira metade do século XVI pela tratadística
moral e pedagógica europeia nem sempre foi acompanhada, compreensivelmente, por
uma idêntica ou aproximada atenção, literariamente traduzida, pelo menos, em
relação à princesa e a dama de corte. É certo que a mulher, especialmente a nobre,
donzela, casada ou viúva, se tornou, por estes séculos, numa destinatária
privilegiada de alguns tipos de textos, entre os quais ocuparamum lugar
importante algumas obras de espiritualidade e textos educativos mais
específicos, dos quais um dos mais sonantes é a Institutio Foeminae Christianae
de Luis Vives. Mas, de um modo geral, as mensagens destes eram igualmente
válidas para todas as mulheres, apesar de exigirem à princesa ou à grande
senhora um maior protagonismo na sua interiorização e, consequentemente, na sua
afirmação e divulgação. Naturalmente, os objectivos educativos, sobretudo no
que dizia respeito aos aspectos relacionados com o comportamento moral e, em
alguns casos, religioso, ditavam as linhas mestras dessas mensagens. E se é
sabido que poucos foram muito além da recuperação e repetição, embora com
intuitos de actualização, de
velhos tópicos, de velhas fórmulas ou da tentativa de fixação de modelos
comportamentais, não será menos verdade que a insistência, a repetição, a
reformulação e, logo, os novos prismas de abordagem obrigaram ou conduziram a
alguns novos olhares sobre o lugar da mulher, num primeiro momento da mulher
nobre, mas não só a de corte, na sociedade, ainda que desde a perspectiva dos
seus deveres familiares ou domésticos.
Mas é também neste contexto que a pesquisa da incidência do olhar,
ainda que discreto, e dos debates sobre as funções, a vários níveis da princesa
e da dama de corte poderá adquirir um significado importante ou interessante,
até porque muitas das questões levantadas, ou recoladas, neste período em torno
da alegada inferioridade (física, intelectual ou social) da mulher
conduziram também à exaltação de algumas claras
e virtuosas mulheres, entre as
quais figuravam não só importantes figuras bíblicas ou da tradição clássica,
mas também algumas mais modernas,
entre elas algumas princesas e grandes senhoras, propostas também como exemplos ou espelhos para todas as mulheres. Não podemos esquecer os
objectivos e, logo, os textos que determinaram o modo como foram elaborados não
só os textos, mas também o tratamento específico dos termos femininos em diferentes obras. Não
podemos, por exemplo, ler ou interrogar do mesmo modo uma obra como a Institutio
Foeminae Christianae de Luis Vives e o terceiro livro de Il
Cortegiano de Castiglione, apesar de ambas as obras se deverem a dois
humanistas e de terem sido editadas em datas muito próximas: só que em
contextos e para públicos, pelo menos, bastante diferentes, tanto mais que, ao
nível do próprio título das obras, se fazia uma diferenciação relativamente
clara dos seus destinatários. E nem o facto de ambas terem sido traduzidas para
castelhano por humanistas espanhóis e editadas em datas relativamente próximas
(a primeira em 1528 e 1529 e a segunda em 1534)
poderá permitir inferir, num primeiro momento, o mesmo tipo de público na
Península Ibérica. No caso concreto de Il Cortegiano, só o conhecimento da
obra poderia dar conta conta da presença dos temas femininos na mesma». In Maria de Lurdes Correia
Fernandes, Francisco Monzón e a Princesa Cristã, Revista da Faculdade de Letras
– Línguas e Literaturas, Anexo V, Séculos XVI-XVIII, Porto, 1993.
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