Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
iniciadas.
«(…) Mais do que mostrar que é piedosa e magnânima, a jovem rainha, que
não esquece as dores imensas de que amigos seus padeceram, mostra que tem
grande astúcia política, intuição e sentido da medida. Para castigar Pombal
como os seus inimigos reclamavam, ela teria de rejeitar o despotismo de Pombal
e deixar manchado na galeria da História o retrato de seu pai com as sombras da
pusilanimidade, da ausência de firmeza na governação e da passividade cúmplice.
Só em circunstâncias extremas guarda uma filha semelhante tratamento para um
pai, sobretudo quando ele foi rei e amado nessa dupla condição. Nunca Maria,
devota e temente a Deus, rezaria para que se agravasse ainda mais a decrepitude
de Sebastião José. Mas, no íntimo, ansiava pelo desfecho fatal, pelo epílogo
trágico que pusesse fim a tantos meses de sofrimento. Se fosse essa a vontade de
Deus, seria uma dádiva dos céus para o sofredor Pombal e para a nova
governação. Já nas terras que lhe davam título, em Pombal, ele próprio, farrapo
de si mesmo, febril e em crescente estado de putrefacção, daria a ordem de
execução, como muitas vezes fizera antes, se tal de si pudesse depender. -
Majestade, só a morte pelo garrote e pelo fogo, como a que foi imposta ao pobre
padre Malagrida, dará a Pombal o castigo que merece e que Deus, por certo,
para ele tem reservado no tribunal da Sua vontade suprema. Raro era o dia em
que D. Maria I não ouvia da boca de nobres e plebeus com responsabilidades frases
deste jaez, ditadas por um ódio que nenhum bom senso ou memória de feitos
incontroversos seria capaz de apaziguar. Até o povo, antes de pedir pão, reclamava
agora a punição exemplar daquele que em nome dele tantas vezes pronunciara a
palavra progresso ao falar do renascimento
de Lisboa e do futuro de Portugal, prática tão comum que se vulgarizara.
Nem os confessores, jurados inimigos do ex-governante, davam agora
sossego à jovem rainha, sussurrando-lhe visões dantescas como a que aqui fica
registada:
- - Sabei, Majestade, que vosso amado pai sofre agora as tremendas penas do Inferno, por ter permitido que Pombal mandasse matar, degredar e humilhar tanta gente inocente, somente por ser na Terra um dos representantes do próprio Demónio.
Piedosa e de espírito atormentado, a rainha padecia de terríveis
pesadelos, nos quais via o pai José I a arder no meio das mais furiosas labaredas,
gritando pelo seu nome e exigindo-lhe que castigasse severamente o seu ministro
por tanto o ter enganado e desviado do recto e iluminado caminho. Entretanto,
despertava alagada em suores e dava-se conta de que o verdadeiro Inferno era
ali mesmo na Terra, junto de si, com a vizinhança daquela personagem que, embora
fisicamente distante, nos interrogatórios de Pombal, todos os dias a
assombrava, a desassossegava, como se fosse ela e não ele o arguido. Os temores
e alucinações que mais tarde viriam a toldar-lhe de vez a razão e a empurrá-la
para a loucura foi nesses meses que se instalaram na sua mente inquieta para
nunca mais dela saírem. As raízes da insanidade nunca se desprendem do chão
movediço da razão atormentada. Se Pombal, o Marquês
de todos os males e suspeitas, tinha de ser confrontado com a justiça, que o
fosse quanto antes, sem tergiversações ou ambiguidades. Para tanto, designou a
rainha dois desembargadores da sua confiança, ambos conhecedores dos trabalhos
e do carácter do ex-ministro do rei, que deveriam confrontá-lo com todas as
acusações contra ele inventariadas. E que não fossem brandos nem excessivamente
cruéis, buscando a medida justa no discurso e na gestão do tempo.
Mais do que condenar Pombal, era imperioso, diga-se, fazer sofrer
Pombal, sem permitir que viesse a Lisboa defender-se em tribuna pública, como
chegou a reclamar, já que, se tal desiderato fosse atendido, iriam ouvir-se da
sua boca muitas inconveniências sobre pessoas e instituições entretanto
guindadas às mais altas funções do Estado. - Que se justifique, padeça e se
defenda, caso possa, e que o interrogatório seja, em si mesmo, a parte mais
importante da execução da sentença. O mais que houver para ser dito e lavrado
para depois se tornar História constará de um decreto que assinarei com o meu
punho, e não quero que tarde a hora em que o farei. Foi com estas ordens que os
desembargadores José Luís França e Bruno Manuel Monteiro,
reputados homens de leis, partiram sem demora, para, entre Outubro de 1779 e Janeiro de 1780, fazerem pesar sobre a consciência do Marquês o sentimento de
agravo de uma nação inteira e de uma rainha comprometida com o destino do seu
povo e com o valor sagrado da justiça, acima da qual o homem que fora ministro
da plena confiança de seu pai não poderia em circunstância alguma ficar». In
José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J.
Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.
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