Em busca do conceito de História
«(…) 8. Também não se pode
determinar uma vez por todas e para todas as épocas a totalidade em que a
história nacional se insere. Há que definir a par e passo os contornos mais
visíveis dos contextos, seguindo as leis, as cadeias, os vincos das
instituições. Que esta comunidade, este povo que somos, este corpo organizado,
não é só e sobretudo a fronteira que o unifica. A fronteira, os limites, os factores aglutinantes são os
laços e as relações sociais. Essas leis são um produto social e de classe.
Estamos unidos pela língua, laços biológico-mentais-sociais. Pela estrutura socioeconómica.
Unidos pela ideologia, uma bandeira, um hino, uma mística. Unidos um pouco pela
carne. Juntos e contidos pelo aparelho político-militar. As barreiras das armas
fronteiriças, das alfândegas, são impunemente saltadas pelos grupos dominantes.
A história do monopólio quinhentista da pimenta constitui já um exemplo
significativo da impunidade no saltar das fronteiras. Para defender esse
monopólio estatal, estabelecido à força contra os interesses venezianos e
turcos, morreram milhares de portugueses nos mares do Oriente em naufrágios e
batalhas. Setenta anos volvidos, sem dispararem um tiro, de pleno direito, com
todas as honras e benesses, o grupo italiano dos Affaittatti, preso a Portugal
pelo negócio e a alcova, recebeu das mãos da coroa portuguesa o monopólio da
pimenta que tantas vidas ceifara.
Repete-se: Portugal não vive só. Partilha com a Espanha o leito
peninsular. Outros países estabeleceram connosco relações estreitas. Na Europa,
a Inglaterra, a Flandres, a França, a Itália, o Império, a Hansa, a Irlanda. Na
África, Marrocos, a Argélia, a Tunísia (Magrebe) e principalmente nos
tempos modernos a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Moçambique. Na
América, o Brasil e outros países, sobretudo latino-americanos. Na Ásia, alguns
territórios da Índia, Macau, Timor Leste, Ceilão e outros territórios e nações.
Mas nem só estes países tiveram comércio político ou outro connosco. Todos os
povos da Terra estão hoje unidos directa ou indirectamente. Basta lembrar o
comércio e a notícia como símbolos de toda a cadeia de laços complexos que unem
hoje quase todos os homens da Terra e já do espaço exterior.
9. Esta reflexão leva-nos a
um outro ponto: as histórias nacionais constituirão os caboucos essenciais em
que assenta a História Universal ou pelo contrário terão de ser as histórias
nacionais a comungarem, a
explicarem-se na História Universal? Não se trata de opor História Nacional
a História Universal, trata-se de defender que as leis e conceitos mais gerais
terão de ser testados no Todo e não só na sua parte. Hoje os homens de toda a
Terra são a face visível do Todo mas no passado comunidades de ameríndios e
outras comunidades não se comportavam como
verdadeiras totalidades? As histórias nacionais não podem encerrar-se
em si próprias embora do ponto de vista do método da investigação constituam
pontos de partida essenciais. As leis sociais vencem os molhes opostos pelos
aparelhos políticos-militares dos Estados, mesmo quando estes não são apenas
agentes, para uso interno, da política e dos interesses dos Estados mais
poderosos. Contudo, não se nega que Portugal seja uma unidade viva do Todo
Social onde as leis mais gerais podem perder a força e quebrar-se; unidade que
se traduz num aparelho político-militar, económico, ideológico, dotado de
autonomia e que carreia, ao nível da consciência, educação, casa, clima,
paisagem, língua, ferramentas, tradições, literatura, arte, epopeia, sangue
misturado, crime, castigo, amor habituado, amante, excomungado.
10. Repare-se que nos
mantivemos até aqui nos problemas gerais que esta história exemplar levanta.
Mas se entrarmos no terreno concreto da investigação, os problemas adensam-se. Por onde começar? Pela geografia, pelo económico, pelo político,
pelo cultural? Depois, já dentro do terreno escolhido, que ideias-ferramenta utilizar? Civilização? Complexo histórico-geográfico? Forças produtivas? Relações
de produção? Classes e luta de
classes? Ordens? Família?
Nenhuma destas ferramentas pode ser ignorada, mas terá de ser definida e
testada caso a caso, ou seja, temos de saber privilegiar, a par e passo, os
conceitos mais adequados. Por exemplo, demonstrámos já que, para a sociedade do
chamado Antigo Regime, ignorar a luta de classes e substituí-la pelo conceito
de ordem não compensa. Os conceitos de classe e ordem relacionam-se
estreitamente, mas o segundo vai ganhando novos conteúdos de classe, tornando-se
um conceito compósito, aglutinador de grupos opostos, tornando por si só a
explicação do processo social equívoco e até impossível.
11. Referimos algumas das
dificuldades que a História de Portugal levanta. Pergunta-se: será possível a
um só historiador abarcar todo o
espaço e tempo que esta investigação exige? Os compêndios que trazem os
nomes História de Portugal procuram traduzir melhor-pior a história
vivida do nosso povo, mas serão o resultado de uma só investigação pessoal? Essas sínteses gerais alimentam-se, para
as diferentes épocas, de trabalhos analíticos, próprios e sobretudo alheios.
Por sua vez estes trabalhos de análise beneficiaram já dos trabalhos daqueles
que cultivaram as ciências auxiliares da História; do trabalho dos cultores das
ciências sociais e das outras ciências sem esquecer as matemáticas. No trabalho
de investigação, é o particular, é a análise do particular, que ressalta. Mesmo
nas histórias gerais, Universal ou Nacional, quando se pretende alcançar o Todo,
só o conseguimos através do particular. Deste particular nos fala Michel de
Certeau quando escreve: … nada pode
apagar a particularidade do lugar de onde falo e do domínio onde prossigo a
investigação [...] o gesto que liga as ideias a lugares é precisamente um gesto de historiador. Esta
realidade não parece exclusiva da história. Cabe também às outras ciências.
Trata-se de uma característica do entendimento que Leibniz bem caracterizou a
propósito da demonstração». In António Borges Coelho, Questionar a
História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial
Caminho, Lisboa, 1983.
Cortesia de Caminho/JDACT