«(…) Eram tempos de ...roubo e malfeitoria..., expressões
constantes nos documentos que traduzem um estado de agitação e violência, que
acabam por precipitar o País numa guerra civil, travada entre os partidários do
rei e aqueles que contra a realeza se manifestavam, ou melhor, aqueles que se
perfilavam contra a centralização do poder levada a cabo pelo rei e sua cúria. Mas
o reinado de Sancho II marca, também, o predomínio dos cavaleiros cristãos nas
terras alentejanas. O esforço de guerra que, nos reinados anteriores, serviu para
garantir ao monarca, através do alargamento dos seus domínios, um controlo razoável
das tensões aristocráticas, parece agora não se revelar tão eficaz, no sentido
de debelar um cada vez maior sentimento de revolta contra o poder régio. É o
quadro destas instabilidades que pretendemos estudar. As suas origens, os seus
processos evolutivos, o estado e a forma das instituições políticas na
transição do poder de Afonso II para Sancho II e subsequentemente para Afonso
III, a acção da cúria régia, como órgão fundamental na estratégia da acção do
Estado e no controlo da sociedade portuguesa de meados do século XIII.
Da guerra nos campos do
Alentejo e a tentativa de controlo das passagens algarvias, contra um inimigo
comum, à luta civil que leva à deposição do rei, pretendemos observar o quadro
de tensões e fracturas que caracterizaram este reinado e que marcam o Portugal
de 1223
a 1248 como um País onde ocorre uma grave crise política. E se a visão
interna nos orienta a curiosidade, também não podemos deixar de fora o contexto
internacional e a dinâmica de uma Cristandade da qual o reino português faz
parte. A dinâmica relacional com as monarquias peninsulares, os conflitos e as composições
entre este Centro nacional e a Santa Sé, a observação comportamental dos
diferentes universos políticos, entre os quais Portugal se coloca, a influência
e introdução progressiva de novos sistemas de organização política e social, a
turbulência do sistema dualista, caracterizado pelo diálogo interminável entre
o modelo canónico e o direito civil, herdeiro do sistema romano, são aspectos
que nos prendem e que se tornam vitais e funcionais na percepção do conflito
funcional do rei. Bonus rex, rex
inutilis, duas faces, cada uma delas possível de ser aplicada
aos soberanos, cada uma delas observável nos documentos e nas narrativas que
impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por este rei, um dos mais obscuros da nossa história,
mas um dos que levou mais longe o estandarte do reino e também o único a ser
vítima de um conceito de poder superior.
Como mais alguns reis do
seu tempo, e até imperadores, Sancho II de Portugal travou conhecimento de muito
perto com a teoria da superioridade papal sobre as administrações civis. Soube,
de facto, o significado do conceito de Plenitudo
Potestatis. Rex inutilis? Veremos.
Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
Do Conspecto
Qual é a memória que nos resta de Sancho II, o quarto rei de
Portugal? Da sua vida, dos seus feitos, da sua governação, das suas desditas, do seu fim?
Existe uma necessidade imperiosa: a da reconstituição, a mais rigorosa
possível, daqueles tempos e do que neles sucedeu. E se não conseguimos
apreender a vida, tal como ela era, as suas palpitações, as suas tragédias, o
seu quotidiano pleno, cheio de acções e sensações, podemos pelo menos procurar
compreender e explicar alguns comportamentos e atitudes do colectivo português
durante grande parte da centúria de Duzentos. E podemos fazê-lo com os textos e
fontes escritas, mais ou menos coevas, e com as interpretações que as várias
décadas de interpretação e síntese histórica foram capazes de produzir sobre
aquele rei e as variadas peripécias do seu reinado. E estas interpretações, por
vezes tão diferentes, permitem-nos assentar, desde já num primeiro problema em
torno deste reinado: o problema
historiográfico.
A questão é fazer o
ponto da situação sobre os conhecimentos existentes e fixados em torno daquele
monarca. Como é que ao longo do processo historiográfico português, se foi
edificando e transmitindo o conhecimento e a
memória que hoje possuímos sobre Sancho II? Do que nos resta das
fontes, da historiografia que as abordou e sobre elas estruturou informação, da
forma como o ensino da história, nas suas várias épocas, tratou este rei, da
imagem formada, clara ou distorcida, e propagandeada, destinada muitas vezes
a cumprir objectivos actuais e que pouco tinham a ver com a rigorosa
reconstrução da história, das diferentes obras e autores que sobre o rei capelo
se pronunciaram, de tudo isto queremos falar, e com tudo isto pretendemos
marcar um momento, o ponto actual sobre o estado da nação entre os anos de 1223
e 1248».
In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro,
Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de
Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval,
2003.
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