Discurso perante a multidão na
cidade do Cabo, no dia da sua Libertação
Dia 11 de Fevereiro de 1990
«Amigos, camaradas e compatriotas sul-africanos. Saúdo-vos em nome da paz, da democracia e da liberdade para todos! Estou
aqui, perante vós, não como um profeta mas como um humilde servo vosso, do
povo. Os vossos sacrifícios incansáveis e heróicos tornaram possível a minha
presença hoje aqui. Deposito, pois, os anos de vida que me restam nas vossas
mãos. Neste dia da minha libertação, quero também exprimir a minha sincera e
mais viva gratidão aos meus milhões de compatriotas e a todos quantos, nos
quatro cantos do mundo, nunca se cansaram de fazer campanha pela minha
libertação.
[…]
Hoje, a maioria dos sul-africanos, negros e brancos, reconhece que o apartheid
não tem futuro. Temos de acabar com ele, pela nossa acção conjunta e decisiva,
para construir a paz e a segurança em todo o país. A resistência colectiva e as
outras acções empreendidas pela nossa organização e pelo nosso povo não podem
deixar de conduzir à instauração da democracia. A destruição causada pelo apartheid
no nosso subcontinente é incalculável. Para muitos, deixou de existir estrutura
familiar. Há milhões sem casa e sem emprego. A nossa economia está arruinada e
o nosso povo mergulhado no conflito político. O nosso recurso à luta armada em 1960, com a formação do braço armado do
ANC, Umkhonto we Sizwe, era uma acção meramente defensiva contra a
violência do apartheid. Os factores que levaram à luta armada persistem
hoje. Não nos resta outra alternativa senão continuar com ela. Resta-nos
esperar um clima favorável às negociações para que a luta armada não seja por
muito mais tempo uma necessidade.
Sou um membro leal e disciplinado do Congresso Nacional Africano.
Estou por isso plenamente de acordo com todos os seus objectivos, as suas
estratégias e as suas tácticas. Unir os habitantes do nosso país é uma tarefa
tão importante e necessária hoje como sempre foi. Nenhum dirigente, qualquer
que ele seja, pode levá-la a bom porto sozinho. Nós, os líderes políticos,
temos de submeter os nossos pontos de vista à nossa organização e deixar que
seja ela a decidir de acordo com o processo democrático que é o seu. É meu
dever, a este propósito, sublinhar que um dirigente do movimento é uma pessoa
eleita democraticamente em congresso nacional. É um princípio que tem de ser
observado, sem lugar à mínima derrogação. Hoje, desejo comunicar-vos que as
minhas conversações com o governo se destinaram a normalizar a situação
política no país. Ainda não começámos a discutir as reivindicações fundamentais
da nossa luta. Quero também salientar que eu, pessoalmente, em nenhum momento
encetei negociações quanto ao futuro do nosso país, a não ser para insistir num
encontro entre o ANC e o governo. O
Sr. De Klerk foi mais longe do que qualquer outro presidente
nacionalista, ao tomar medidas concretas no sentido de normalizar a situação.
Porém, outras diligências, como as que ficaram esboçadas na Declaração de
Harare, terão de ser desenvolvidas antes de podermos negociar os direitos
fundamentais que o nosso povo exige. Aproveito esta oportunidade para reiterar
a nossa reivindicação, entre outras, do levantamento imediato do estado de
emergência e da libertação de todos os presos políticos não apenas de alguns.
Só uma situação normalizada, que garanta uma livre actividade política, pode
permitir-nos consultar o nosso povo para dele obter um mandato.
O povo tem de ser consultado para decidir quem vai negociar e quais são
as negociações a fazer. Nenhuma negociação deve ter lugar sem o parecer dos
nossos concidadãos. O futuro do nosso país só pode ser decidido por um órgão eleito
democraticamente numa base não racial. As negociações, que incidirão sobre o
desmantelamento do apartheid, terão de tomar em consideração o desejo irreprimível
do nosso povo de uma África do Sul democrática, não racial e unitária. É
preciso acabar com o monopólio branco do poder político e preparar uma reestruturação
dos nossos sistemas político e económico, para se poder assegurar que as
desigualdades devidas ao apartheid sejam eliminadas e a nossa
sociedade seja perfeitamente democratizada. E bom que se diga que o Sr. De
Klerk é um homem íntegro, que tem uma consciência apurada dos perigos a que
se exporia uma personalidade pública que não honrasse os seus compromissos.
Dito isso, a nossa organização tem o dever de definir a sua linha de conduta e
a sua estratégia em função da dura realidade com que estamos confrontados. E
esta realidade traduz-se no facto de continuarmos a sofrer os efeitos da política
posta em prática pelo governo nacionalista. A nossa luta está num momento
crucial da sua história. Apelamos ao nosso povo para que se mobilize no sentido
de tornar rápido e ininterrupto o caminho que conduz à democracia. Há demasiado
tempo que esperamos pela liberdade. Não podemos esperar mais. E tempo de
intensificar a luta em todas as frentes. Esmorecer na nossa combatividade seria
uma falta que as gerações futuras não iriam perdoar-nos. A liberdade que se
desenha no horizonte tem de nos dar ânimo para redobrarmos os nossos esforços. Só
uma acção maciça e disciplinada pode garantir-nos a vitória. Apelamos aos
nossos compatriotas brancos para que se juntem a nós na construção de uma nova
África do Sul, o movimento pela liberdade pertence a uma família política em
que eles também têm lugar. Apelamos à comunidade internacional para que
prossiga a sua campanha para isolar o regime do apartheid. Levantar agora
as sanções seria correr o risco de fazer abortar o processo que há-de levar à
erradicação total do apartheid.
A nossa marcha para a
liberdade é irreversível. Não podemos permitir que o medo se atravesse
no nosso caminho. O sufrágio universal, assente na participação comum de todos
os eleitores numa África do Sul unificada, democrática e não racial, é a única
via que leva à paz e à harmonia racial. Para concluir, gostaria de repetir as
palavras que já pronunciei no decurso do meu julgamento, em 1964. São tão verdadeiras hoje como
eram na época:
- Tenho lutado contra a dominação branca e contra a dominação negra. Tenho acalentado o ideal de uma sociedade democrática e livre em que todas as pessoas possam viver juntas, em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para cuja concretização espero viver. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.
In Jack Lang, Leçon de vie pour l’avenir, Perrin 2004, Nelson Mandela,
Uma Lição de Vida, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2005, ISBN 978-972-53-0275-0.
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