«O divertimento proveitoso, que é uma adaptação do latim do prodesse et dilectare, é o
princípio que está na base do programa didáctico geral adoptado pela nossa autora
e pela maior parte dos escritores seus contemporâneos. Em as Aves Ilustradas pode
detectar-se ainda a convergência de diversas vertentes culturais, que incluem a
fusão da simbologia moral e da erudição, e a presença das formas tradicionais
da fábula, do apólogo e do conto exemplar aliadas a formas de retórica como a
prosopopeia, utilizando por vezes como base, material proveniente da Idade Média,
como os Bestiários. Como sóror Maria do Céu é extremamente criativa e
muito culta, consegue fazer sínteses sui generis dos modelos disponíveis
no seu tempo, produzindo verdadeiras criações que, sendo estruturalmente híbridas,
acabam por constituir uma unidade especial. O conceito de divertimento, podemos dizer que é semelhante ao que Freud
propõe no século XX quando afirma que qualquer trabalho (ou aprendizagem)
resulta muito melhor se dele derivar prazer. Nas alíneas que se seguem, irá
permitir, concluir sobre a originalidade destas composições de sóror Maria
do Céu, não obstante ter ido buscar aos géneros referidos alguns elementos
essenciais. Foi dessa combinação de elementos já divulgados, aliados a outros
novos resultantes de uma grande imaginação, criatividade e bom gosto, que
resultaram as peças literárias de grande beleza e originalidade que nos legou.
A moral e a erudição
Sóror Maria do Céu
viveu cerca de metade da sua vida no século XVII, (nasceu em 1658 e morreu em 1753),
pelo que a sua obra reflecte as ideologias e as características nos diversos
campos artísticos dominantes nesse período, denominado Barroco, que em Portugal se prolongou até meados do século
XVIII. Na sua obra surgem fundidas e assimiladas as influências religiosa e
pagã resultantes da Contra-Reforma, que se caracteriza por uma forte
presença do catolicismo, e da cultura clássica, veiculada pelas obras dos
autores clássicos amplamente divulgadas. Ana Hatherly, quando analisa a obra em
prosa de sóror Maria do Céu na sua Introdução a A Preciosa, escreve:
- em geral em toda a sua obra, encontramos a defesa dos valores morais, sociais e estéticos vigentes na sociedade sua contemporânea. O seu referente ideológico principal é a ortodoxia católica na sua fase contra-reformista, ligada à escolástica medieval e permeada de platonismo e neoplatonismo.
É notória a preocupação
pedagógica que a autora revela em todas as suas obras, bem patente quando
transmite os ensinamentos colhidos na ortodoxia religiosa e sobretudo no
misticismo. Esta vertente cristã surge, no entanto, impregnada de referências
colhidas na cultura clássica, e nos mestres seus contemporâneos, cujas obras
reflectiam o culto do espectáculo e do lúdico, característico da sua época.
Sobre este assunto, na obra atrás citada, Ana Hatherly diz:
- a obra de sóror Maria do Céu afigura-se-nos como essencialmente didáctica, didáctico-recreativa. Não obstante a presença duma profunda religiosidade e até de claro misticismo em alguns casos, parece-nos que há nela mais uma visão mística do que o relato de uma experiência mística...
Os primeiros
ensinamentos religiosos, colheu-os na doutrina da Igreja, nos sermões, nas
vidas de santos e de figuras exemplares; os segundos, resultam da muita
erudição que revela ter, excepcional no seu tempo, especialmente numa senhora
que tão nova ingressou no convento. Os conventos eram locais privilegiados para
a aquisição de conhecimentos, especialmente quando se tratava de uma pessoa
interessada, inteligente e excepcionalmente dotada. Ana Hatherly, na sua
Introdução à A Preciosa, de sóror
Maria do Céu, refere:
- No panorama da literatura portuguesa do século XVII, particularmente no campo da prosa de ficção e não obstante a sua especialização na área das narrativas alegóricas a lo divino, a obra de sóror Maria do Céu nada tem a recear do confronto com autores como Francisco Rodrigues Lobo, Francisco Manuel de Melo ou Alexandre de Gusmão [...] A sua produção, prolongando-se até meados do século XVIII, representa bem a pujança artística que o Barroco assumiu em Portugal, ilustrando nos seus múltiplos aspectos toda a riqueza e toda a variedade de pensamento e expressão que esse período abarca. Sóror Maria do Céu é, de facto, um expoente extremamente representativo dos valores morais e estéticos vigentes durante o período barroco em Portugal e na Península Ibérica.
Da assimilação da
vertente moral e da erudição resulta uma hibridização que é uma das
principais características do Barroco literário. Aves Ilustradas está repleta de intenções morais: são
inúmeras as histórias e exemplos apresentados para comunicar ao leitor a sua mensagem
pedagógica de elevado teor moral e religioso. Ao utilizar este processo, sóror
Maria do Céu revela a cada passo a sua enorme cultura e erudição. Esta preocupação
de citar obras de autores clássicos, no caso de sóror Maria do Céu, que era uma
pessoa modesta, não seria para exibir a sua erudição, como acontecia com outros
escritores cultos, mas para reforçar o valor do exemplo, uma vez que, assim,
provava que ele já vinha do passado e de autores de grande prestígio. A
principal finalidade de obras como Aves
Ilustradas era,
portanto, funcionar como veículo de ideias morais e modelos de comportamento,
colhidos em obras ou testemunhos merecedores de todo o respeito e crédito. Nas Aves Ilustradas encontramos
permanentemente os animais irracionais, as
aves a falar aos humanos, às religiosas, procurando dar-lhes ensinamentos,
transmitindo-lhes mensagens de elevado valor moral, para sua edificação e vida no
convento. Trata-se pois, como vimos, de fábulas mistas, geralmente
conhecidas por apólogos […].
Os apólogos de Aves Ilustradas não
terminam com provérbios, mas sim com poemas em castelhano que resumem e
reforçam a mensagem transmitida ao longo do conto. Também nas definições
encontradas e transcritas para este género literário se refere que as fábulas
são geralmente escritas em verso. Apenas na conclusão de cada Discurso
encontramos um poema alusivo. Por tudo o que ficou dito, julgamos poder
concluir, que Aves Ilustradas,
de sóror Maria do Céu, foi escrita dentro do género em moda na ocasião, conto, fábula. Sem no entanto podermos
considerá-lo como um género puro, antes podemos considerá-lo híbrido porque nele
participam elementos da fábula, do apólogo e do conto exemplar, constituindo
uma unidade especial. Nestes discursos encontramos sempre presente o conceito
de divertimento proveitoso, conceito básico da acção didáctica adoptado por sóror
Maria do Céu, nesta e em outras obras suas [...] Sóror Maria do Céu terá ido
buscar certas ideias que apresentou na sua obra Aves Ilustradas a
esta e outras obras medievais. Quando põe o Pavão a dar avisos à Prelada,
é evidente a relação entre as características atribuídas à ave e a autoridade de
que se reveste aquela religiosa devido às funções que desempenha dentro do
mosteiro; no caso da Andorinha e da vigária da Casa são equiparadas as
características das duas; quando refere que a Águia, rainha das aves, vai buscar ao Sol os ensinamentos que
transmite através das aves, simboliza
os homens de sábio entendimento; e o mesmo sucede quando utiliza as Corujas
para dar um exemplo negativo. Julgamos poder concluir que obras como as que
aqui foram referidas, poderão ter sido conhecidas por sóror Maria do Céu e ter estado
na base do grande interesse que autores cultos como ela manifestaram pela sua
utilização, nas suas obras, fazendo dos animais (neste caso, as Aves),
das suas características dominantes e dos seus hábitos de vida, hábil e
inteligente transposição para os dos homens, extraindo daí exemplos de conduta
moral». In sóror Maria do Céu, Aves
Ilustradas, Maria Manuela Paulo, FCG, Dissertação de Mestrado, FCSH,
UNL, 1994.
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