quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

H. Oliveira Marques. A Sociedade Medieval Portuguesa: A Mesa. «O rei e seus conselheiros consideraram que eram feitas maiores despesas que as que deviam fazer em comer... Daí saiu uma pragmática que estabelecia um certo número de regras, moderadas»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Mesa
«(…) Embora escasseiem os dados, sabemos que grande número de regras de boa conduta à mesa vigoravam no Portugal medievo. Já atrás tomámos contacto com algumas delas. Também no serviço havia normas. O cozinheiro levante as colheres, dizia a regra cisterciense, primeiramente à parte direita, começando no prior; despois à parte sestra, começando junto com o prior. Estamos em crer que a disciplina conventual, estendida até aos pormenores mais ínfimos das regras de boa conduta à mesa, influiu muito na fixação de um código social de comportamento. Mas só nos fins do século XIV ou princípios do XV se começaram a estabelecer regras de colocação de lugares. Ainda por 1386, ao encontrarem-se o rei João I e o duque de Lancaster, ali se desarmaram e assentaram-se a comer ambos de uma parte, sem curarem de parte direita nem esquerda, cá inda então não era em uso, e assim os que vinham com o duque. Os monarcas preocupavam-se, às vezes, em refrear o excesso de luxo que os nobres e os ricos ostentavam. Essa preocupação surgia, quase sempre, em períodos de crise, ou que a imediatamente precediam, quando a sumptuária mais se fazia notar. Em certos casos, o desejo de refrear excessos alargava-se à própria alimentação. Foi o que sucedeu no Portugal de 1340. O rei e seus conselheiros consideraram que eram feitas maiores despesas que as que deviam fazer em comer... Daí saiu uma pragmática que estabelecia um certo número de regras, moderadas. Dividindo a população que importava considerar em ricos-homens, filhos d'algo e cidadãos, proibia aos primeiros o uso de mais de três pratos de carne ao jantar e de dois, à ceia; aos segundos e terceiros, o uso de mais de dois pratos, ao jantar, e de um, à ceia.
Podiam, é certo, comer todo o peixe, marisco, caça, criação e lacticínios que quisessem, desde que o houvessem por serviço ou por venação. A concluir este capítulo, vejamos a descrição de dois banquetes festivos, que Garcia de Resende inclui na sua Crónica de EI-Rei D. João II, ao narrar o casamento do príncipe Afonso com D. Isabel, filha dos reis Católicos.

Logo à terça-feira à noite houve banquete de ceia na sala da madeira, em que El-Rei e a Rainha, e o Príncipe e a Princesa comeram, e com eles o Senhor D. Jorge, e Rodrigo de Ilhoa, embaixador, todos em uma grande mes, com muito grandes dorséis de brocado, que tomavam toda a sala através, e na primeira mesa da mão direita comia o marquês de Vila Real com as senhoras donas e damas, e na primeira da mão esquerda o arcebispo de Braga, e o bispo de Évora, e de uma parte, e da outra, assim homens como mulheres. E a mesa de El-Rei com todo-los oficiais vestidos de brocados, e servida por moços fidalgos que serviam de tochas e bacios, ricamente vestidos. E as outras mesas todas com trinchantes e oficiais vestidos de ricas sedas e brocados e mui galantes, e assim os moços da câmara ordenados a cada mesa, todos vestidos de veludo preto. No qual banquete houve infinitas e diversas iguarias e manjares, e singular concerto e abastança e muitas e assignadas cerimónias. E quando levaram à mesa de El-Rei as iguarias principais era a primeira e derradeira, e de beber a ele e à Rainha, e ao Príncipe e Princesa, iam sempre diante, dois e dois, muitos porteiros de maça, reis de armas, arautos e passavantes, os porteiros-mores, quatro mestres-salas, o veador, e os veadores da fazenda, e detrás de todos o mordomo-mor, e todos iam com os barretes na mão até o estrado, onde faziam suas grandes mesuras, e os veadores da fazenda iam com os barretes na cabeça até o meio da sala, e do meio por diante os levavam na mão, e o mordomo-mor ia sempre coberto até o fazer da mesura, que juntamente fazia e tirava o barrete. E era tamanha cerimónia que durava muito cada vez que iam à mesa. E o estrondo das trombetas, atambores, charamelas e sacabuxas, e de todo-los ministréis era tamanho que se não ouviam, e isto se fazia cada vez que El-Rei, a Rainha, e a Princesa bebiam, e vinham as primeiras iguarias à mesa; e a copeira era coisa espantosa de ver. E logo à entrada da mesa veio uma grande carreta dourada, e traziam-na dois grandes bois assados inteiros, com os cornos e mãos e pés dourados, e o carro vinha cheio de muitos carneiros assados inteiros com os cornos dourados, e vinha tudo posto num cadafalso tão baixo com rodetas por fundo dele, que não se viam, que os bois pareciam vivos e que andavam. E diante vinha um moço fidalgo com uma aguilhada nas mãos picando os bois, que pareciam que andavam e levavam a carreta, e vinha vestido como carreteiro com um pelote e um gabão de veludo branco forrado de brocado, e assim a carapuça, que de longe parecia próprio carreteiro, e assim foi oferecer os bois e carneiros à Princesa e feito o serviço os tornou a virar com sua aguilhada por toda a sala até sair fora, e deixou tudo ao povo, que com grande grita e prazer foram espedaçados, e levava cada um quanto mais podia. E assim vieram juntamente a toda-las mesas muitos pavões assados com os rabos inteiros, e os pescoços e cabeça com toda a sua penar que pareceram muito bem por serem muitos, e outras muitas sortes de aves e caças, manjares e frutas, tudo em muito grande abundância e grande perfeição.

Muitas e grandes festas se fizeram todos os dias e noites até domingo, cinco dias de Dezembro, em que houve outro segundo banquete na dita sala da madeira, de muitas mais invenções, abastança e gentileza, e de muito mais política, e muito melhor servido que o primeiro». In A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Aspectos da Vida Quotidiana, A Esfera dos Livros 2010, ISBN 978-989-626-241-9.

Cortesia de Esfera dos Livros/JDACT