O Anjo da Tempestade
«Aí por meados do século dezanove, num cerro do Algarve, a meio caminho
entre o mar e a serra de Monchique, um tio-bisavô meu foi assassinado. Imagino que
tenha sido no Verão, numa tarde do mês de Agosto mais quente desse século; a
meio da tarde, sem uma vibração de vento, pode ouvir-se o bater de asas de uma
mosca; mas não se ouvem os passos sorrateiros de um assassino, escondido atrás
de umas moitas, e aproximando-se do viajante, pelas suas costas, até chegar a
altura certa para desferir o tiro de arcabuz que o levará desta para melhor. O
que ia o homem fazer nessa tarde de Verão em que lhe deram um tiro, não é para
aqui chamado. Estaria ele a descer da serra até ao mar, de regresso de uma visita
aos seus bosques de sobreiros que lhe davam o suficiente para manter a casa e o gado nas propriedades do
litoral? Ou estaria a caminho das Caldas, onde iria fazer uma cura de água
para os seus ossos que, apesar de sólidos e duros, poderiam começar a acusar o toque da idade nos outonos e invernos que
se aproximavam?
O corpo não foi logo encontrado; e é de presumir que entre o seu
desaparecimento e a altura em que se iniciaram as buscas tenha decorrido algum
tempo, nessa época em que as comunicações não eram o que são hoje, ou seja, o
tempo suficiente para que o corpo tenha tido tempo de começar a decompor-se, a
ser atacado por animais e aves de rapina, e finalmente a ser pasto de vermes que
dele tiraram o que ainda havia para tirar. Coberto por ramos e pedras, de forma
mais displicente do que apressada, pelo assassino que, afinal, acabou por não
encontrar muito de que se aproveitar, porque um viajante em tão ermo lugar não
levaria muito de seu, para além do estritamente necessário para o caminho, o
meu tio-bisavô acabou por ser localizado por um grupo de ciganos que, em vez de
recolherem os restos para o transportar para uma localidade mais próxima, deram
à língua na taberna onde alguém, que soubera da história e conhecia o meu
familiar, alertou a autoridade que, subindo até à serra, resolveu o problema,
entregando o defunto à família, que lhe deu enterro e pranto, como era devido.
O pranto, porém, não foi além do que as conveniências exigiam, primeiro
porque o desaparecimento ocorrera há longos dias, durante os quais a ideia da
morte tivera tempo de fazer o seu caminho e preparar os espíritos para o triste
acontecimento; e depois porque o homem, solteirão e misantropo, não tinha criado
grandes afectos entre próximos, e muito menos entre servidores e colegas de
negócio. A repartição dos bens, por outro lado, transformou essa indiferença em
hostilidade para com o defunto porque, não tendo deixado testamento, deu azo a
que presumíveis herdeiros tivessem guerreado entre si o tempo suficiente para
que os bosques de sobreiros tivessem ficado ao abandono, com a consequente
perda da cortiça, e campos e gado se perdessem na desavença.
O que nunca terá ficado claro foi a razão por que o meu antepassado
remoto foi assassinado. Em meados do século dezanove, sobreviviam ainda alguns
bandos de malfeitores que tinham sido animados pelo fim da guerra civil:
desertores de um lado ou outro, antigos guerrilheiros do absolutismo ou
liberais perdidos na nova ordem, tinham-se reunido em grupos que viviam de
roubo a casas isoladas ou assaltos a quem se metia por inóspitos caminhos sem a
devida precaução. Protegidos por cúmplices locais, ou dispondo de um
conhecimento seguro da região, dificilmente seriam encontrados, e menos ainda
quando as próprias forças do reino não tinham nem esse conhecimento da
geografia nem as informações necessárias para limpar o terreno. Quando me
contaram a história, pouco mais de um século depois, falava-se do assunto como
se tivesse ocorrido na véspera; era, no entanto, um homem que não deixara
memória, embora muitos anos depois, num velho pacote de fotografias, me
tivessem aparecido pessoas que se poderiam ter confundido com ele, com pesadas
samarras de viagem e patilhas espessas a encherem o rosto. Era gente que viera
depois da sua morte, mas que o poderia ter conhecido, e que ainda guardava uma
certa imagem do desconcerto que teria acompanhado a existência de quem conviveu
com tão terríveis sucessos». In Nuno Júdice, O Anjo da Tempestade,
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, 2009.
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