quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Comunas ou Concelhos. História. António Borges Coelho. « Não se defende Toledo cristã de mouros e de cristãos? Não se rompem as armas do conde Henrique contra cristãos, tendo conquistado parte do reino de Leão com Astorga e Zamora como se fosse de mouros?»

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Leão e Andaluz
Alá tenha misericórdia
«(…) Não ,nos espantemos se o ideal de cruzada alterna com a colaboração descarada com o infiel. As correias retesadas de mais partem, ontem ou agora. Se no século IX, Eulógio e Álvaro Córdova pregam a luta intransigente contra os muçulmanos, os principais dignatários civis e eclesiásticos da igreja do Andaluz colaboram então abertamente no terreno político e militar com o emir dos crentes. Nos finais do século X, como vimos, condes cristãos participam na punição de Santiago e na partilha de despojos, que ocorre na Lamego islamita. Pouco depois o conde Sancho Garcia de Castela ajuda os berberes contra os hispano-árabes muçulmanos, adoptando os seus costumes. O conde Ben Gomes, por sua vez, partilha o destino trágico do filho de Almançor e de uma concubina cristã, Sanchuelo. Afonso V veste as armas de cruzado mas, teremos de esperar pelo avanço do partido franco-cluniacense-romano para que o ideal de cruzada aguce e tempere as suas espadas. Mesmo então Afonso VI ufanar-se-á do seu título de imperador das duas religiões e não verá inconvenientes em adoptar como concubina ou esposa a nora de Almutâmide, Zaida. E para o filho da ex-moira se voltará seu coração, para ele inclinará a coroa de imperador de toda a Hespanha mas a morte vai arrebatar-lhe o filho em Uclés.
Nos séculos X e XI, os chefes militares asturo-leoneses preocupam-se não tanto com a libertação do Sul mas sobretudo com boas presúrias em territórios de cristãos ou de muçulmanos que lhe permitam criar o clima de insegurança propício à manutenção do monopólio da terra bem como ao sustento da sua hoste de vassalos. Não se defende Toledo cristã de mouros e de cristãos? Não são as praças fernandinas do Douro obrigadas a apelido contra mouros e cristãos? Não se rompem as armas do conde Henrique principalmente contra cristãos, tendo conquistado boa parte do reino de Leão com Astorga e Zamora como se fosse de mouros?
Os presores eram particularmente ávidos de gado humano, mesmo que os cativos gritassem por Santa Maria e se defendessem a sinal da cruz do demónio cristão, como aconteceu com os vencidos de Lisboa de 1147. Quem senão eles sangrava a riqueza da terra? Na conquista de Talavera, Fernando Magno arrebanhou sete mil cativos que distribuiu pelos soldados. O mesmo aconteceu aos defensores de Seia e Viseu quando sucumbiram sob as armas desse monarca. Por sua vez Afonso Henriques, só depois das ásperas censuras do prior de Santa Cruz, Teotónio, libertou mais de mil prisioneiros moçárabes pilhados numa razia. Por que é que os cristãos do Islão não morrem de amores pelos guerreiros da cruz? A situação dos dependentes está bem expressa no poema transcrito por um autor muçulmano:

Os cristãos fazem incursões no país e apoderam-se de despojos. Os árabes e o fisco levam o resto.
Todo o dinheiro se escoa para Castela (para o tributo). Que Alá se compadeça dos seus escravos e tenho misericórdia!

O Concílio de Leão
Dissemos que os acontecimentos do século XI assinalam uma viragem na sorte das armas. Significativamente esta viragem, com os seus avanços e recuos, é acompanhada pela definição de uma nova orientação política, timidamente desvelada no Concílio de Leão de 1020. No concílio participam o rei Afonso V sua mulher Elvira e todos os arcebispos, bispos e abades de Espanha, transparecendo a nova orientação nas seguintes palavras que pareceriam acidentais a um leitor desprevenido: todos os concelhos que forem feitos daqui em diante... Esclareça-se, antes de mais, que a razão expressa da reunião consiste em estabelecer o estatuto dos moradores da cidade de Leão, arrasada por Almançor em 988 no tempo de Bermudo II e de novo humilhada nos alvores do século XI pelos filhos do chefe islamita. Não se trata de fundar expressamente (em palavras) o concelho de Leão, embora seja de facto essa a finalidade como se lê nas entrelinhas, designadamente quando se fala nas magistraturas e suas atribuições e quando o texto se descose: os concelhos que forem feitos daqui em diante...
Os problemas afrontados por esta assembleia de bispos e que impediam o ressurgimento de Leão não eram fundamentalmente o salto dos mouros, tinham decorrido trinta e dois anos sobre o motivo expressamente invocado despovoada e presa de mouros na época de Bermudo, mas gravíssimas tensões internas. Repare-se: o objectivo expresso é povoar Leão, mas isso só é possível através de concessões e da aceitação implícita do concelho ou governo municipal, constituído pela assembleia dos vizinhos ou consilium e pelos funcionários por ela eleitos. Aliás as disposições legislativas dos bispos e reis não deixam qualquer margem de dúvida sobre a tensão social e política que aí se vivia». In António Borges Coelho, Comunas ou Concelhos, Editorial Caminho, colecção Universitária, Lisboa, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT