Leão e
Andaluz
Alá tenha misericórdia
«(…) Não ,nos espantemos se o ideal de cruzada
alterna com a colaboração
descarada com o infiel. As correias retesadas de mais partem, ontem ou agora.
Se no século IX, Eulógio e Álvaro Córdova pregam a luta intransigente contra os
muçulmanos, os principais dignatários civis e eclesiásticos da igreja do Andaluz colaboram então
abertamente no terreno político e militar com o emir dos crentes. Nos finais do
século X, como vimos, condes cristãos participam na punição de Santiago e na
partilha de despojos, que ocorre na Lamego islamita. Pouco depois o
conde Sancho Garcia de Castela ajuda os berberes contra os hispano-árabes
muçulmanos, adoptando os seus costumes. O conde Ben Gomes, por sua vez,
partilha o destino trágico do filho de Almançor
e de uma concubina cristã, Sanchuelo. Afonso V veste as armas de cruzado
mas, teremos de esperar pelo avanço do partido franco-cluniacense-romano
para que o ideal de cruzada aguce e tempere as suas espadas. Mesmo então Afonso
VI ufanar-se-á do seu título de imperador
das duas religiões e não verá inconvenientes em adoptar como concubina
ou esposa a nora de Almutâmide, Zaida. E para o filho da ex-moira se
voltará seu coração, para ele inclinará a coroa de imperador de toda a Hespanha mas a morte vai arrebatar-lhe o
filho em Uclés.
Nos séculos X e XI, os chefes militares asturo-leoneses
preocupam-se não tanto com a libertação
do Sul mas sobretudo com boas presúrias em territórios de cristãos ou
de muçulmanos que lhe permitam criar o clima de insegurança propício à manutenção
do monopólio da terra bem como ao sustento da sua hoste de vassalos. Não se defende Toledo cristã de mouros e
de cristãos? Não são as praças
fernandinas do Douro obrigadas a apelido contra mouros e cristãos? Não
se rompem as armas do conde Henrique
principalmente contra cristãos, tendo conquistado boa parte do reino de Leão
com Astorga e Zamora como se fosse de mouros?
Os presores eram particularmente ávidos de gado
humano, mesmo que os cativos gritassem por Santa Maria e se defendessem a sinal
da cruz do demónio cristão, como aconteceu com os vencidos de Lisboa de 1147.
Quem senão eles sangrava a riqueza da terra?
Na conquista de Talavera, Fernando Magno arrebanhou sete mil cativos que
distribuiu pelos soldados. O mesmo aconteceu aos defensores de Seia e Viseu
quando sucumbiram sob as armas desse monarca. Por sua vez Afonso Henriques, só
depois das ásperas censuras do prior de Santa Cruz, Teotónio, libertou
mais de mil prisioneiros moçárabes pilhados numa razia. Por que é que os cristãos do Islão não morrem de amores pelos guerreiros da
cruz? A situação dos dependentes está bem expressa no poema transcrito
por um autor muçulmano:
Os cristãos
fazem incursões no país e apoderam-se de despojos. Os árabes e o fisco levam o
resto.
Todo o
dinheiro se escoa para Castela (para o tributo). Que Alá se compadeça
dos seus escravos e tenho misericórdia!
O Concílio de Leão
Dissemos que os acontecimentos do século XI
assinalam uma viragem na sorte das armas. Significativamente esta viragem, com os
seus avanços e recuos, é acompanhada pela definição de uma nova orientação
política, timidamente desvelada no Concílio de Leão de 1020. No
concílio participam o rei Afonso V sua mulher Elvira e todos os arcebispos,
bispos e abades de Espanha, transparecendo a nova orientação nas seguintes
palavras que pareceriam acidentais a um leitor desprevenido: todos
os concelhos que forem feitos daqui em diante... Esclareça-se, antes de
mais, que a razão expressa da reunião consiste em estabelecer o estatuto dos
moradores da cidade de Leão, arrasada por Almançor em 988 no tempo de Bermudo
II e de novo humilhada nos alvores do século XI pelos filhos do chefe islamita.
Não se trata de fundar expressamente (em palavras) o concelho de Leão,
embora seja de facto essa a finalidade como se lê nas entrelinhas,
designadamente quando se fala nas magistraturas e suas atribuições e
quando o texto se descose: os concelhos que forem feitos daqui em
diante...
Os problemas afrontados por esta assembleia de
bispos e que impediam o ressurgimento de Leão não eram fundamentalmente o salto
dos mouros, tinham decorrido trinta e dois anos sobre o motivo expressamente
invocado despovoada e presa de mouros na época de Bermudo, mas
gravíssimas tensões internas. Repare-se: o objectivo expresso é povoar Leão, mas isso só é possível
através de concessões e da aceitação
implícita do concelho ou governo municipal, constituído pela assembleia
dos vizinhos ou consilium e pelos funcionários por ela eleitos. Aliás as
disposições legislativas dos bispos e reis não deixam qualquer margem de dúvida
sobre a tensão social e política que aí se vivia». In António Borges Coelho, Comunas
ou Concelhos, Editorial Caminho, colecção Universitária, Lisboa, 1986.
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