terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Mas ao verem as presas, feitas ‘em tão breve tempo e com tão pequeno trabalho’, as vozes discordantes vacilavam e, em surdina, ‘louvavam o que antes publicamente doestavam’. Crescia a cobiça…»

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O Tráfico de Escravos na Época Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«(…) Na Época Moderna, o problema consistia essencialmente no estabelecimento de um comércio regular de escravos entre o continente africano, a Europa e, posteriormente, a América, através do Atlântico. A novidade portuguesa foi precisamente a deslocação do comércio do Mediterrâneo para o Atlântico e a consequente concorrência às actividades comerciais das repúblicas italianas. A exploração dos territórios coloniais, obrigou a uma intensificação do emprego de mão-de-obra escrava, como meio de superar o baixo índice populacional, o que tornou necessário o envio constante de escravos africanos a bom preço, sem passarem pelos entrepostos comerciais muçulmanos e italianos. Para o homem da Época Moderna a escravatura desses povos não era uma aberração, mas, pelo contrário, uma condição perfeitamente justificável à luz do direito, da religião e até das concepções que foram surgindo sobre a natureza humana. O facto de a escravidão sempre ter existido no mundo mediterrânico, associado à influência do Direito Romano e ao pensamento cristão, que admitiam e justificavam este tipo de domínio, levou à sua aceitação como facto normal e a encarar da mesma forma o tráfico de cativos.
O direito do mais forte, a salvação das almas e o pretexto de civilizar foram os novos fundamentos que o mundo moderno, sucessivamente, utilizou para justificar a redução do homem à condição de escravo e este, à sua mais simples expressão de instrumento vivo de trabalho, no dizer de Perdigão Malheiro. Será, segundo Caio Prado Júnior, o esforço muscular, sob a direcção e açoite do feitor e procurar-se-á nele não a humanidade do homem, mas a sua animalidade. Será o pária social. E será assim que, ao longo dos séculos, após os Descobrimentos, o irão aproveitar, em larga escala, para exploração dos seus domínios, não só os portugueses, mas todas as potências coloniais europeias.

Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos
Quando, em 1436, Afonso Gonçalves Baldaia se preparava para mais uma viagem ao longo da costa africana, o infante Henrique recomendou-lhe que procurasse capturar alguns naturais, para se poderem obter informações acerca daquelas terras e das gentes que as povoavam. Porém, foram em vão os esforços de Afonso Gonçalves para satisfazer os desejos de Henrique. Mais feliz foi Antão Gonçalves, guarda-roupa do Infante que, em 1441, foi por ele incumbido de ir ao rio do Ouro buscar azeite e peles de lobos marinhos. Conhecendo o desejo de seu amo de contactar com gentes daquelas terras, ultrapassou o mandato recebido e, com o intuito de lhe agradar, embrenhou-se pela terra dentro, cerca de três léguas, com nove dos seus homens escolhidos entre os mais capazes, conseguindo capturar dois habitantes. Antão Gonçalves trazia agora para o reino os primeiros indígenas da região. Porém, isso não significava para Nuno Tristão, navegador português, que na altura andava também por aquelas paragens, que não fosse importante trazer outros, porque além da sabedoria que o senhor infante por eles haveria, seguir-se-lhe-ia proveito da sua serventia ou rendição. Nestas últimas palavras de Nuno Tristão, é clara a intenção de adquirir nas terras africanas um suplemento de braços para os trabalhos agrícolas em Portugal, o que, aliás, não sendo novidade, vinha na sequência da utilização do mouro, dos guanches e, por vezes, de um ou outro branco, como escravos.
Com o intuito de fazer mais apresamentos, desembarcaram os dois capitães e, dissimuladamente durante a noite, acometeram de novo os indígenas, aprisionando 10. Regressados a Portugal, foram recebidos com louvores e, o infante Henrique, vendo os cativos que lhe traziam, deu mostras do seu contentamento, não pela quantidade dos que vinham, mas pela esperança que tinha dos outros que podia haver. Um dos cativos de Antão Gonçalves, que se dizia descendente dos chefes da sua tribo, pedia insistentemente ao navegador para o levar de regresso à sua terra natal onde, em troca da liberdade, lhe daria 5 ou 6 mouros negros. Convencido Antão Gonçalves, de novo rumou em direcção ao sul e trocou este e outro africano por dez negros entre mouros e mouras de terras desvairadas. A esta segunda viagem de Antão Gonçalves, sucedeu outra de Nuno Tristão em 1443. Desta vez, os portugueses alcançaram as ilhas de Arguim e das Garças, cerca de vinte e cinco léguas além do cabo Branco, onde apresaram 29 indígenas. Estes primeiros resultados da empresa do Infante foram de facto entusiasmantes. Muitos haviam-no censurado pelos enormes gastos despendidos com o envio de navios para paragens de onde nada lhes parecia advir, a não ser a perda total dos navios e fazendas. Mas ao verem as presas, feitas em tão breve tempo e com tão pequeno trabalho, as vozes discordantes vacilavam e, em surdina, louvavam o que antes publicamente doestavam. Crescia a cobiça, em especial quando viam as casas dos outros cheias de servos e servas, e suas fazendas acrescentadas».

In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT