terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Decifração em Textos Medievais. Apertio Libri. Arnaldo Espírito Santo. «Este pão é a Escritura, o qual pão, ou seja, a qual escritura os homens, como crianças sem forças, antes da vinda de Cristo, pediam que lhes fosse partido, ou seja, que lhes fosse aberta e interpretada»

jdact

Conferências. Paradigma
«(…) Refiro esta cena para advertir que este livrinho que está aberto na mão do anjo não é o mesmo livro que, no capítulo V, é objecto da cerimónia da apertio libri nem tem a mesma carga simbólica. Aí tratava-se de um livro selado por sete selos, cujo conteúdo nunca chega a ser revelado; aqui, no cap. X, trata-se de um livrinho aberto que foi entregue por um anjo ao Profeta como sucederá com Ezequiel, e que é doce na boca porque contém a palavra de Deus. Mas porque é que é amargo no estômago? Diferença significativa em relação ao livro de Ezequiel. Sobre este aspecto da simbologia do livro a exegese patrística e medieval é muito parca, pois todos se confinam, de uma maneira ou de outra, ao isótopo da penitência, que decorre da doçura da leitura e da pregação. Acentuemos, porém, que a palavra de Deus não se apresenta, nem a Ezequiel nem ao autor do Apocalipse, como mensagem oral, mas como um livro que é preciso comer. Relevamos ainda uma outra verificação: a simbologia da apertio libri transita de Ezequiel, em contexto normal do exercício da actividade profética, para contextos apocalípticos ou de fim do mundo. Assim a vamos encontrar no 4.º livro de Esdras, um apócrifo escrito em finais do séc. I d. C. Aí a abertura dos livros (não do livro) será feita diante do firmamento, para que venha à luz do dia a maldade dos homens. Aqui a função simbólica da apertio libri remete para o grande dia, o do julgamento. No Apocalipse, que recolhe a mesma tradição, a abertura dos livros onde está contido o registo das acções dos homens é feita diante do trono. Por esses livros foram ou serão julgados os mortos.
Com esta segunda abertura do livro completamos dois elementos essenciais da cultura medieval, o fim do mundo e o julgamento individual: o livro é uma ameaça tremenda porque contém a prova da futura condenação. É evidente que se trata mais uma vez de um símbolo, neste caso de um locus terribilis. Pelo livro se recebe a missão, pelo livro se recebe a mensagem divina, pelo livro se recebe a conversão, pelo livro se muda de vida, pelo livro se é julgado. Um dos casos mais interessantes deste género de abertura do livro é o que ocorre num fragmento copta do Apocalipse de Henoch, um apócrifo do séc. V da nossa era, mas que apresenta as mesmas características dos apócrifos judaicos. Assim como João, o autor do Apocalipse, assim também Henoch é arrebatado. Mas se no Apocalipse o arrebatamento se pode entender de uma forma espiritual, no caso de Henoch diz-se expressamente que foi arrebatado corporalmente ao céu. Uma vez aí, Henoch não só recebe a revelação dos mistérios, mas ainda lhe é apresentado um livro, selado com três selos, no qual se encontra escrito o nome e os desígnios de Deus. É este o conteúdo da revelação feita a Henoch. O nome escrito é o da Santíssima Trindade, clara interpolação de origem cristã. Mas além disso, é atribuída a Henoch a função de escriba das acções dos homens. Trata-se de um outro livro que vem desempenhar as mesmas funções da segunda abertura do livro que encontramos no Apocalipse e que se relaciona com o juízo final.

Decifração
A abertura do livro é a fundamentação da vida da Igreja e, por ela, da sociedade ocidental. Segundo um autor de finais do séc. VIII que em plena época carolíngia escreveu um comentário ao Apocalipse, a abertura do livro dá-se após a descrição da forma da Igreja. E esse autor explica que depois de a Igreja ser fundada pelos Apóstolos e pelos restantes pregadores entre os gentios, começaram a fazer-se os comentários aos livros do Velho e do Novo Testamento: comentários avalizados por serem escritos por santos doutores e por estarem de acordo com a norma da fé apostólica.
Nesta perspectiva, o decifrador do texto por excelência, neste caso, do texto bíblico, é o comentador, o expositor, enfim, o autor de comentários. E, mais ainda, o comentador tem uma função importante na vida da Igreja, tão importante como a do apóstolo e a do pregador, porque é ele que vai renovando a própria doutrina interpretada segundo a norma apostólica da fé. Dele se espera que seja um vir ou um doctor sanctus. Retenhamos deste texto a equação apertio libri apertio divinarum scripturarum. Permitam-me um salto do séc. VIII para o séc. XII a fim de cotejar um texto belíssimo de Pedro Abelardo, extraído do seu Epítome de Teologia Cristã. Diz Abelardo, em texto que traduzo:

Este pão é a Escritura, o qual pão, ou seja, a qual escritura os homens, como crianças sem forças, antes da vinda de Cristo, pediam que lhes fosse partido, ou seja, que lhes fosse aberta e interpretada, e não havia quem lho partisse, até que Cristo veio para lhes abrir as Escrituras. Por isso diz João no Apocalipse: E ninguém podia abrir o livro e quebrar os selos.

Depara-se-nos aqui a mesma imagem da abertura do livro cujo conteúdo está cifrado, não obstante ser um alimento essencial. Na belíssima expressão de Abelardo o pão é a escritura e a escritura é o pão». In Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.

Cortesia de Colibri/JDACT