Introdução
«(…) Salientamos os que
dizem respeito às relações entre os grupos sociais e os níveis culturais, à
articulação do governo da casa com a relação masculino/feminino, ao
relacionamento dos casados entre si, desde o económico ao pessoal, e com as
respectivas famílias, ao lugar da criança nas preocupações não só de ordem
familiar e patrimonial, mas também sentimental e educativa, ao universo simultaneamente
familiar, em alguns casos social e individual das mulheres, à influência do
religioso e as aspirações espirituais dos casados, etc. Nesta linha de
problemas, que têm merecido uma atenção acentuadamente menor, colocam-se alguns
mais específicos, como o da articulação entre a imposição paterna e o reconhecimento pelo Direito Canónico
do casamento consensual; o da motivação, das motivações, dos casamentos
clandestinos, o da vida privada dos casados, que não é, obviamente, apenas o da
sexualidade; o da relação entre a moral cristã e a moral conjugal; o da relação
entre as práticas religiosas e espirituais e as obrigações do cumprimento dos
deveres conjugais e familiares; o da relação afectiva dos esposos entre si e
com os filhos; enfim, ou antes de mais, a oposição virgindade/casamento... Todos
estes aspectos que, por seu turno, se relacionam intimamente com o jogo das
práticas e das representações culturais, tendo sido, por vezes, objecto de
estudo, quase sempre parcelar ou muito específico, necessitam ainda de
pesquisas mais aprofundadas e pormenorizadas, que não só a busca do documento
inédito, no sentido de lhes procurar a importância que verdadeiramente podem
ter tido. Assim, no que diz respeito às formas de vida e comportamento social
da nobreza, ou de alguns senhores, à sua ideologia e mesmo a algumas das suas
representações, e de alguns grupos sociais mais próximos dela, muito se vai
sabendo, também é verdade que, para além do óbvio e, logo, do tópico, muito
pouco ainda se conhece, apesar de tudo, das suas preocupações íntimas, dos seus
anseios pessoais, das suas práticas atitudes...
E se tentarmos penetrar
nos grupos sociais menos influentes e menos prestigiados, dos quais pouco mais
do que o silêncio tem chegado até nós, quantas dúvidas e quantas interrogações
sem resposta... Quais as suas concepções
de casamento? Que representava
este nas suas vidas e nas suas opções? Quais os seus sentimentos e como influíam no seu quotidiano?
Quais os seus hábitos religiosos e
práticas espirituais? Como
eram orientados? Como os conjugavam
com as exigências da sua vida social? Estas perguntas, apesar de já
muitas vezes feitas, e muitas permanecerão sem resposta, orientaram e
continuarão a orientar as pesquisas aqui pretendidas. Há, que continuar a re-ler os textos, sejam eles
de natureza jurídica, institucional, política, moral, religiosa ou literária;
há que interrogá-los, na sua especificidade e na relação eventual que tenham,
ou possam ter, entre si; há que compará-los, há ainda que continuar a
procurá-los e, porque não, interrogar também os silêncios e as omissões. De
facto, apesar dos muitos progressos já feitos na investigação histórica, e
independentemente das lacunas que continuarão a existir, têm sido pouco
explorados certos tipos de fontes pouco evidentes,
mas em que o tema do casamento, nas suas múltiplas facetas, surge ou é mesmo
determinante. Essas fontes, que não apenas as legislativas, normativas e as que
focam explicitamente o problema, (casamento, mulher, celibato) são, de facto, múltiplas:
desde as obras de espiritualidade até aos tratados ascético-morais; das obras ad status como alguns
sermões, os espelhos de príncipes, de senhores, de religiosos, os manuais para
confessores e pregadores e mesmo os catecismos, até às crónicas e relações de
festas de casamento; das vidas de santos e/ou pessoas ilustres ou exemplares
até às cartas ou epístolas várias, passando pelos provérbios e outros textos
ditos menores. Enfim, ou antes
de mais, os espelhos de casados,
que nos abrem o caminho para termos acesso, simultaneamente, à especificidade
da espiritualidade do casamento e à sua relação ou contextualização na
espiritualidade cristã desses séculos.
Estas fontes, doutrinárias,
morais, pedagógicas..., constituem um vasto e diversificado conjunto de
registos em que o casamento, de forma mais ou menos evidente ou preponderante,
surge, com frequência, tratado, implicitamente ou por alusão, quando não motivador...
Não esqueçamos que muitas destas obras, nomeadamente as que tinham intuitos
catequéticos e pedagógicos, tiveram entre os seus objectivos principais o de
contribuir, socorrendo-se de métodos e retórica próprios, para a divulgação e
aceitação das normas canónicas e dos princípios doutrinários, o que, no caso do
matrimónio, se traduziu não só na definição e institucionalização de uma
teologia sacramental do matrimónio, mas também na criação e aprofundamento de
uma espiritualidade, se não própria, pelo menos adaptável aos casados». In Maria
de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade
na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.
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