Este livro não aspira a ser mais que uma leve conversação com o leitor sobre
assuntos camilianos e, fundamentalmente, ainda um preito de veneração e saudade
que eu venho render à memoria do imortal Torturado de Seide. In Alberto
Pimentel, Trafaria, Maio de 1921.
«Parece que alguém julgou
vêr numa carta de D. Ana Plácido, ministrada ao meu estimável amigo Nunes Branco
(cartas inéditas da segunda mulher de Camilo, Lisboa, 1916), um flagrante
desmentido á afirmação, que eu fizera, de que aquela infeliz senhora mais desejava
o titulo de esposa que o de viscondessa. Ainda hoje, não obstante a referida carta,
penso do mesmo modo. Pois o que é que se lê no documento em questão? Até
que emfim está visconde (Camilo)! Esta frase revela-nos que D. Ana Plácido bem
sabia quanto de longe vinha o ressentimento do romancista por não ter sido considerado
literariamente pelos governos do seu país, como o foram Garrett, Castilho, Benalcanfôr
e Roussado, que receberam mercês honoríficas. A pobre senhora está satisfeita
vendo realizado este ideal de Camilo, mas como lê muito bem na alma
do seu atormentado companheiro, sabe que não era para a deixar viscondessa que êle desejava o título. Por sua parte nunca
a deslumbraria um título a que tarde adquiriria direito pelo casamento legal em
que o romancista falava de tempos a tempos para logo afastar essa fugaz ideia. E
ainda que o casamento viesse a realizar-se, Ana Plácido esperava o arrependimento
do seu antigo amante.
Só para não irritar Camilo
foi que ela, assim o confessa, fingiu acreditar no programa de casamento...
que tardou ainda três anos e a que, com uma ironia muito portuense, chama casório. Tudo o que então se passa lhe parece
uma comedia hipócrita, porque uma coisa única devia ter-se feito muito antes do
título, era o casamento, que seria a recompensa pública de longos e dolorosos sacrifícios,
recompensa que tal mulher como D. Ana Plácido, inteligente, briosa e dedicada, não
podia deixar de querer para se reabilitar, oficialmente, da sua estrondosa
queda. Se ela não pensasse assim, pelo menos no seu foro íntimo, não seria D. Ana
Plácido, mas apenas uma vulgar mulher, que a amante de Camilo nunca fora. De outra
carta da mesma procedência talvez o destinatário quisesse inferir que eu divagara
por longe da verdade, atribuindo a D. Ana Plácido o desaire de vestir mal e uma
ignorância sistemática da evolução dos figurinos. Trata-se de lhe terem sido enviados
dois chapéus para escolher um. … cá estão
os 2 á escolha, escreveu ela textualmente ,e venha o diabo, como diz o povo, pôr-lhe
o dedo! São 2 trastes próprios p.ª costureira reles. Um já muito velho, muito desbotado,
com uma fita muito ordinária, é o da minha preferência! O outro, mais leve um pouco,
mais fresco, tem umas flores canárias que atestam o bom gosto da tal modista. Emfim,
cá fica um dos monos.
Toda a mulher,
especialmente a dotada de senso estético e habituada a brilhar na sociedade, possui
o bom gosto de vestir, que levou Ana Augusta a repelir, num gesto inconsciente,
o chapéu de berrantes flores canárias. Mas, a autora da Luz coada por ferros, aborrecida
do mundo, entediada de viver, ficou com o chapéu mais velho, mais desbotado, de
fita mais ordinária. Se ambos os chapéus eram maus, uma senhora, que tivesse ainda
exigências de antigo coquetismo, ou saudades dos seus dias opulentos, não escolheria nenhum deles, tanto mais que poucas
vezes saía à rua, nem queria sair. Ora o que eu disse foi que a ilustre senhora,
enquanto viveu no antigo lar conjugal, vestia com esmero e esplendor, mas que na longa expiação do adultério não quis nunca
mascarar-se de mulher feliz. O trecho relativo aos chapéus plenamente confirma
quanto a este respeito aventei. Venham a lume outras missivas, venham novas confidencias
epistolares, para me confundir esmagadoramente, porque, as duas a que me tenho referido
não produzem prova em contrário, antes ratificam as minhas afirmações, feitas
aliás com escrupulosa segurança.
O Dropp
Nas Folhas caídas, apanhadas na lama,
que são indubitavelmente de Camilo Castelo Branco, posto saíssem
anónimas, há, entre outras, uma sátira intitulada O Dropp. As duas primeiras
quintilhas enunciam o assunto por um modo nebuloso para a geração moderna:
Aranha de pau de pinho,
caranguejola, que és?
És o dropp; ora o dropp,
é uma coisa (diz Pop)
sem ter cabeça nem pés.
Visto isso, temos dropp;
ninguém tenha á barra medo.
A asneira não é tão calva;
a gente sempre se salva:
de que modo? Isso é segredo.
Por estas e outras quintilhas fica-se apenas percebendo vagamente que o dropp era um aparelho de pau, destinado
a servir junto da barra do Porto para socorro dos navegantes». In Alberto
Pimentel, O Torturado de Seide, Camilo Castelo Branco, Livraria Manuel dos
Santos, Lisboa, 1921.
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