Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos
«(…) Como resultado do entusiasmo geral, constituiu-se o primeiro agrupamento
comercial de particulares, hoje conhecido pela designação de Companhia
de Lagos. Lançarote, almoxarife do rei em Lagos, depois de reunir 6
caravelas bem armadas, foi o primeiro a pedir licença ao Infante para se deslocar
à terra donde vinham aqueles mouros. Sob a sua chefia, partiu de Portugal a primeira
grande expedição com o objectivo exclusivo e declarado de apresar escravos. Não
iam com o fim de travar relações com os indígenas, mas para os aprisionar. O
nauta era agora também um caçador de escravos e o valor económico a
estes conferido era por demais evidente. A expedição partiu de Lagos
em 1444 e, na ilha das Garças, Lançarote, ao falar aos
companheiros da missão de que tinham sido mandatados por Deus e pelo Infante,
exortou-os a levar para o reino uma presa bem maior do que todas as anteriores.
Dispondo de tantos navios vergonhosa coisa seria tornar para Portugal
sem avantajada presa. Segundo Zurara, a expedição regressou a
Lagos com 235 cativos que aí foram expostos em mercado. Porém, Diogo Gomes, que
fez parte desta expedição, aumentou o número para cerca de 650. A sua partilha,
a primeira a que o infante Henrique assistiu, ficou imortalizada em patético
relato na Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné. Criaturas na
maior miséria, debilitadas pela fome e tormentos da viagem, eram extraídas dos
navios. Uns eram de razoável brancura, outros pardos e outros negros. Repartidos
em lotes ao sabor do acaso, uns conservavam-se cabisbaixos, chorando, outros
gemiam dolorosamente de olhos fixos no céu, outros ainda, no desespero da sorte
obscura, feriam-se ou lamentavam-se segundo o costume da sua terra, e as
crianças, engrossando o coro trágico, constantemente fugiam para os pais.
Perante tal visão, qual seria o coração, por duro que ser podesse que não fosse pungido de
piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? Mas à luz da consciência
cristã, tudo isto podia ser perfeitamente justificável, uma vez que, embora por
um caminho de sacrifício, estes indivíduos eram conduzidos à salvação:
- Ó tu, celestial Padre [...] eu te rogo que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha que chore piedosamente o seu padecimento.
Em 1445, Antão Gonçalves com
3 caravelas rumou para o cabo Branco. Na ilha de Arguim, tomou de noite um
mouro negro e sua filha, tendo sido aconselhado por estes a atacar uma aldeia
em terra firme, onde acabou por fazer 25 cativos. Ali recolheram João
Fernandes, deixado por uma expedição anterior, com o fim de aprender a língua e
tomar conhecimento directo com a terra. Por seu intermédio, negociaram com um
chefe mouro a compra de 9 negros e um pouco de ouro em pó. Ao voltarem ao cabo
Branco, assaltaram ainda uma aldeia de azenegues, onde apresaram 55
indígenas. As incursões não se faziam somente ao litoral saariano;
simultaneamente continuaram a realizar-se constantes correrias ao arquipélago
das Canárias. Em Zurara, colhemos exemplos significativos da frequência com que
os navegadores portugueses aí se dirigiam, no intuito de fazer escravos. Da
grande expedição de 1445 à Guiné,
desgarraram-se as caravelas de Tavira e Picanço que, ao encontrarem o navegador
Álvaro Gonçalves Ataíde, lhe propuseram ir à ilha de Palma, a fim de cobrar
alguma presa daqueles canários. Depois da concordância geral, para lá
se dirigiram e, com a ajuda de alguns naturais, apresaram num só dia l7
canários (guanches). No entanto, João Castilha, capitão da caravela de
Álvaro Gonçalves Ataíde, achando que a presa era pequena para assim tornar ao
reino, conseguiu a anuência de todos para se apoderarem de 21 daqueles
indígenas que os ajudaram, fazendo-os ir traiçoeiramente às caravelas. Porém, à
sua chegada ao reino, o Infante não reconheceu esta presa feita tão
ardilosamente e, depois de bem tratar os indígenas, mandou-os de novo para a
sua terra. Também Álvaro Dornelas se dirigiu à ilha da Palma onde, com a ajuda
dos guanches, aprisionou 20 naturais da ilha.
Não foram só os portugueses que navegaram até àquelas ilhas com o fim de
fazer escravos. Desde muito cedo que Castela se havia envolvido nesse tráfico.
Segundo os historiadores espanhóis, os castelhanos navegaram para as Canárias e
comerciaram em escravos negros desde os primeiros anos do reinado de Henrique
III (1390-1406).
Manuel Fernández Alvarez na obra La Sociedad española del renscimento,
salienta que as Canárias constituíram um centro de aprovisionamento de
escravos, não só para a coroa de Aragão mas, sobretudo a partir do século XV,
também para Castela. E Vitorino Magalhães Godinho, no artigo Guanches,
inserido no Dicionário de História de Portugal, refere que nos começos do
século XIV, os canários deveriam ultrapassar o número de 80 000, para em 1424
estarem já reduzidos a 60 000, número que baixaria para metade nos dois últimos
quartéis do século XV, devido aos numerosos assaltos escravistas a que estavam
sujeitos. Só na ilha de Ferro, em 1402,
foram feitos cerca de 400 cativos». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao
Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de
Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
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