sábado, 9 de agosto de 2014

A Paixão da Memória. O Canto da Salamandra. D. Leonor Teles. Seomara Ferreira. «Aceitaram. Que mais poderiam desejar para a sobrinha que um fidalgo de bens seguros, morgado de Pombeiro, e senhor de suas rendas e do seu belo solar beirão?»

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Cur Non Utrumque
(…) Nasci no Norte, na província agreste de Trás-os-Montes, na era de César de 1388. Foram meus companheiros de infância minha irmã Maria e meus irmãos João Afonso e Gonçalo. Somos Teles Meneses e descendemos de reis. Meu tio, o conde de Barcelos, João Afonso Telo, criou-nos na sua casa. Já vos falei da morte precoce de meus pais, Martim Afonso Telo e D. Aldonça Vasconcelos. A sua morte deu-se trágica e rápida, andava eu pelos cinco, seis anos. O rei Pedro agraciou o meu tio com o título de conde e vivi na sua casa até me casar. Minha mãe era muito bela, ruiva como eu, delicada, jovem e jovem se foi, com os pulmões desfeitos como mais tarde meu marido, o rei de Portugal. Frequentava a minha casa um tio de um apagado fidalgo, filho de um Martim Lourenço Cunha, um tio simpático, que pretendia fazer um bom casamento a esse João Lourenço, seu sobrinho. Meus tios viam com bons olhos essa hipótese. Aceitaram. Que mais poderiam desejar para a sobrinha que um fidalgo de bens seguros, morgado de Pombeiro, e senhor de suas rendas e do seu belo solar beirão? Ninguém me perguntou se estava de acordo. Acedi, como todas as jovens na minha situação e idade. Recordo-me de Lourenço, agora com desagrado, é engraçado, não pelo que me fez após o meu divórcio para me casar com o rei, mas antes. Nunca ninguém se debruça sobre a alma de uma jovem que teve sonhos e ambições e que talvez tenha pretendido outro destino... Não vos posso, sequer, afirmar se, nessa altura, o desejava. Na véspera de meu casamento rezei para que minha mãe, já muito afastada na morte, me auxiliasse, intercedesse por mim, me protegesse. De João Lourenço apenas recordo a estultícia, a cobardia, o seu premente contacto e o desagrado que isso me provocava. Dei-lhe um filho que ele abandonou logo que o deixei. Vós ouvistes já falar certamente. Um filho que ele entregou a dois servos, para que cuidassem dele, como se se tratasse de um simples animal. Mais tarde acusou-me, em Portugal e em Castela, de ter sido eu a abandoná-lo. Quero-vos dizer que não senti essa perda como qualquer mãe sentiria. Pode parecer-vos estranho mas foi um filho que nasceu de mim porque é natural isso acontecer, mas, pobre cúança!, nada trouxe da minha alma. Nunca o amei. Deus encarrega-se de castigar até aquilo de que nunca tivemos culpa. Esse filho varão foi o que me faltou, esse ou outro qualquer, quando eu mais precisei de um esteio forte e legítimo que me ligasse ao trono de Portugal. Meu amigo, durante anos pensei que só pelo esforço da nossa vontade podemos controlar ou modificar o nosso destino.
Enganei-me. Ele encarrega-se de, no fim de tudo, reorientar o que julgáramos ter decidido e levá-lo até onde determinara mesmo antes de termos nascido. Não me faleis em esperança. Não é preciso. Não vale a pena e o resto só Deus sabe. O nosso século tem sido mau. Recordo-me dos horrores da peste, em pequenina, e ela nunca nos largou totalmente, os terramotos, os tornados... Meu tio contava daquele terramoto tão forte, trinta anos antes de eu ter nascido, era vivo meu avô que então se achava em Lisboa, que até caiu a capela-mor da Sé. Derruiu parte da cidade. Ele guardava religiosamente uma taça de prata cinzelada que se salvara e onde escondera, enrolado num pedaço de linho, uma esquírola do lenho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Acreditava que a relíquia o salvara. Seguiram-se as fomes, a falta de trigo, as filas de camponeses engrossando as bermas dos caminhos, a esmolar, os trajes em farrapos. Depois de novo, em 1375, em Lisboa, a terra tremeu na noite de Natal. Meu avô e meus tios, tal como meus pais, decidiram não voltar a Lisboa nos anos próximos.
Os malefícios do tempo anunciavam certamente a terrível guerra entre França e a Inglaterra, que começou treze anos antes de eu ter nascido e ainda continua e em que, sem querer, também participei, participámos todos em Portugal e em Castela. Foi ela o pano de fundo, a tela pintada do teatro onde se cumpriu a minha vida. Quando pelas festividades aqui vêm os actores representar os seus autos e artes, descem o grande pano pintado que lhes serve de fundo e limita o espaço entre os espectadores e as portas da igreja, eu não vejo nele os demónios, os anjos, os seres fabulosos que percorriam as florestas nos tempos de Artur, não. Vejo uma profunda planície limitada por árvores e nuvens, grandes nuvens brancas, de onde brotam os rostos que conheci: Fernando, o Cambridge, João, Dinis, o Mestre de Avis, João Fernandes, Nuno Álvares, o filho de Iria, Judas Navarro, o meu genro enfermiço e vaidoso, o bom do Pessanha, eu sei mais quem! Dois anos antes de eu nascer, no fim de um Verão quente e luminoso, como o são os da minha terra, os da minha linda terra de luz e mar cujas sombras são azuis, o que não acontece aqui em Castela, chegou a Portugal a Grande Peste. Foi em 1386. Fixei a data porque o martírio esperava-se. Ela já atingira a restante Europa, lembro-me de mestre Judas dizer Europa com um ar esfíngico, imperial, palavra que ninguém usa e que ele fora buscar aos velhos alfarrábios de latim, onde estudava a história, as lendas, os velhos poetas e filosofias». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT