sábado, 9 de agosto de 2014

O Canto da Salamandra. D. Leonor Teles. A Paixão da Memória. Seomara Ferreira. «Antes, há alguns anos, afirmaria que dizia isso respeito ao meu estatuto e importância. Hoje não. Aqui vai morrer apenas uma mulher que irá desaparecer da memória dos vivos, apagada pelas nuvens inexoráveis da má vontade dos seus inimigos»

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Lianor, Lianor
(…) Presas de temor, as monjas entreolharam-se e caíram de joelhos a rezar. Sei o que pensaram. Pensaram em mim. E que importância isso tem? Não me assustei, mas elas cederam logo ao meu pedido, enviando-vos recado. No fundo são tão prisioneiras como eu. Tordesilhas é um recanto do mundo sem importância. Disseram-me, e vós podereis confirmá-lo, que era a vetusta Torrelium dos romanos. O Estuñiga, o Diego Lopez, serventuário de meu genro e seu fiel servidor de aleivosias, que me trouxe até aqui, prisioneira como uma ladra de caminhos, explicava-me com um fervor apaixonado, penso que só para me torturar, as origens da terra, do mosteiro que duas princesas, filhas do rei Pedro de Castela, D. Beatriz e D. Isabel, fundaram, parece-me que antes de eu ter nascido, ou por essa altura, sobre os restos de ruínas que remontavam aos mouros e de um antigo palácio. Recordo-me de o ouvir distraidamente pois ainda arranjei tempo para, em segredo, escrever a Martim Anes Barbuda e a Gonçalo Eanes de Castelo de Vide.
Sonhei, até ao fim, que eles chegariam a tempo de me libertar. Em vão. Atravessara as Beiras, ainda geladas, os picos dos montes brancos de neve e, durante esse tempo, numas malditas andas de viagem, rodeada por homens de armas, sisudos e grosseiros, fingi calma, cheguei a sorrir, para disfarçar a agonia que me invadia. Aparentei aquela serenidade que geralmente se consegue atingir antes da ignomínia e da morte, quando já nada nos resta. Mas a viagem chegava ao fim. Ao longe, lá, do rio Douro, no alto, a vila de Tordesilhas. Chegámos tarde, depois de dias de caminhada, aos tropeções por aquele deserto, este, de Castela. Mirei, lavada pelo Sol poente, a campina de Navas e depois, com a alma alanceada, o casario, as suas terras, o mosteiro. Ninguém me viera buscar. A solidão, portanto, é mais que estar só. É a consciência de que deixámos de existir para os outros. As grades da minha cela reafirmam-me essa verdade todos os dias. Com algumas excepções, é certo... Tordesilhas. Aqui parece que está portanto destinada a morrer uma Rainha de Portugal, como já morreram muitas pessoas, algumas princesas e viúvas de sangue fidalgo que o mundo esqueceu também. A grandeza desse acontecimento é relativa.
Antes, há alguns anos, afirmaria que dizia isso respeito ao meu estatuto e importância. Hoje não. Aqui vai morrer apenas uma mulher que irá desaparecer da memória dos vivos, apagada pelas nuvens inexoráveis da má vontade dos seus inimigos. Lembro-me que Judas, meu fiel servidor, afirmava que raramente se diz e escreve a verdade. Não sei. Talvez. Penso que o meu destino será ainda mais adverso depois do meu definitivo repouso sob uma laje fria numa qualquer igreja ou convento de Leão ou Castela, quando o novo rei de Portugal, na ânsia de criar a sua dinastia, isenta de mácula, ou os seus sucessores, fizerem um retrato torpe e injusto de mim e dos que, fiéis, me rodearam. Foi por isso que eu vos chamei. Para vos falar, para vos contar, para depois poder enfim partir em paz, para neste curto instante do nosso encontro ter ainda a ilusão de dominar o tempo e o obrigar a dizer a verdade». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT