Lianor,
Lianor
(…)
Presas de temor, as monjas entreolharam-se e caíram de joelhos a rezar. Sei o
que pensaram. Pensaram em mim. E que
importância isso tem? Não me assustei, mas elas cederam logo ao meu
pedido, enviando-vos recado. No fundo são tão prisioneiras como eu. Tordesilhas
é um recanto do mundo sem importância. Disseram-me, e vós podereis confirmá-lo,
que era a vetusta Torrelium dos romanos. O Estuñiga,
o Diego Lopez, serventuário de meu genro e seu fiel servidor de aleivosias, que
me trouxe até aqui, prisioneira como uma ladra de caminhos, explicava-me com um
fervor apaixonado, penso que só para me torturar, as origens da terra, do
mosteiro que duas princesas, filhas do rei Pedro de Castela, D. Beatriz e D.
Isabel, fundaram, parece-me que antes de eu ter nascido, ou por essa altura,
sobre os restos de ruínas que remontavam aos mouros e de um antigo palácio.
Recordo-me de o ouvir distraidamente pois ainda arranjei tempo para, em
segredo, escrever a Martim Anes Barbuda e a Gonçalo Eanes de Castelo
de Vide.
Sonhei,
até ao fim, que eles chegariam a tempo de me libertar. Em vão. Atravessara as
Beiras, ainda geladas, os picos dos montes brancos de neve e, durante esse
tempo, numas malditas andas de viagem, rodeada por homens de armas, sisudos e
grosseiros, fingi calma, cheguei a sorrir, para disfarçar a agonia que me
invadia. Aparentei aquela serenidade que geralmente se consegue atingir antes
da ignomínia e da morte, quando já nada nos resta. Mas a viagem chegava ao fim.
Ao longe, lá, do rio Douro, no alto, a vila de Tordesilhas. Chegámos
tarde, depois de dias de caminhada, aos tropeções por aquele deserto, este,
de Castela. Mirei, lavada pelo Sol poente, a campina de Navas e depois, com a
alma alanceada, o casario, as suas terras, o mosteiro. Ninguém me viera buscar.
A solidão, portanto, é mais que estar só. É a consciência de que deixámos de
existir para os outros. As grades da minha cela reafirmam-me essa verdade todos
os dias. Com algumas excepções, é certo... Tordesilhas. Aqui parece que
está portanto destinada a morrer uma Rainha de Portugal, como já morreram
muitas pessoas, algumas princesas e viúvas de sangue fidalgo que o mundo
esqueceu também. A grandeza desse acontecimento é relativa.
Antes,
há alguns anos, afirmaria que dizia isso respeito ao meu estatuto e importância.
Hoje não. Aqui vai morrer apenas uma mulher que irá desaparecer da memória dos
vivos, apagada pelas nuvens inexoráveis da má vontade dos seus inimigos.
Lembro-me que Judas, meu fiel servidor, afirmava que raramente se diz e escreve
a verdade. Não sei. Talvez. Penso que o meu destino será ainda mais adverso depois
do meu definitivo repouso sob uma laje fria numa qualquer igreja ou convento de
Leão ou Castela, quando o novo rei de Portugal, na ânsia de criar a sua
dinastia, isenta de mácula, ou os seus sucessores, fizerem um retrato torpe e
injusto de mim e dos que, fiéis, me rodearam. Foi por isso que eu vos chamei. Para
vos falar, para vos contar, para depois poder enfim partir em paz, para neste
curto instante do nosso encontro ter ainda a ilusão de dominar o tempo e o
obrigar a dizer a verdade». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998,
Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.
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Presença/JDACT