quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O Anjo da Tempestade. Nuno Júdice. «Quanto tempo demoraram a dar pela sua falta? A pergunta insiste, comigo; e o que me inquieta, por outro lado, é não saber se esse homem, celibatário, teria tido alguém que esperava…»

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O Anjo da Tempestade
«(…) O que fixei, porém, foi a imagem desse homem que, a meio caminho da serra e do mar, foi surpreendido pela morte. Sem nunca ter sabido o seu nome, ou o de quem o assassinou, e porquê, guardei como obrigação a necessidade de escrever a sua história, embora não haja ninguém que me possa informar sobre alguma coisa da sua vida, e muito menos tenham restado arquivos ou notícias que informem sobre o assunto. A morte de um homem, em meados do século dezanove, não passa então de uma gota de água no oceano de todas as vidas anónimas de que o tempo se apodera, moldando-as no gesso informe de estatísticas e números sobre os quais, presumivelmente, ficamos a conhecer uma sociedade do nosso passado mais ou menos remoto.
Algumas vezes fiz, ou tentei refazer, esse caminho. Primeiro, numa época em que ele mantinha as características do tempo em que o meu antepassado o fizera: careiros de terra por entre muros que ainda mantinham as pedras em que, no quente mês de Agosto, se iam escondendo osgas e lagartos surpreendidos pela passagem de estranhos; casas perdidas num interior completamente isolado, de onde espreitavam rostos de velhos ou crianças assustados pela devassa da sua solidão, como se nunca ninguém tivesse ousado essa aventura de um interior onde só os pássaros dispunham de liberdade plena para o seu voo; matilhas de cães vadios que, também não se sabe porquê, apareciam a ladrar à nossa passagem. Depois, muito mais tarde, os caminhos foram alargados, até muitos deles serem asfaltados; as casas cresceram ao longo deles, e os habitantes já nada têm a ver com a memória dos lugares, desconhecendo tudo sobre o que ali se terá passado, e nada sabendo de episódios antigos, como essa morte de um homem em plena serra, num local onde a última coisa que se pode imaginar é que alguém, numa tarde de Agosto, possa ser surpreendido por um tiro de arcabuz à queima-roupa.
Numa dessas viagens, posso ter pensado que descobri o lugar em que tudo se passou. Não cheguei até lá: vi o cerro de longe, e indicaram-me ter sido ali que um homem tinha sido encontrado, morto, há muitos anos. Nessa época, posso ter desejado ir até ao local e, varrendo a terra seca do calor, procurado vestígios do crime: uma bala, moedas perdidas de um roubo mal executado, pedaços de couro do vestuário, e até, quem sabe, restos de ossadas que se tenham extraviado, e que me serviriam para um sinistro relicário familiar. No entanto, os meus companheiros dissuadiram-me de ir até ao cerro, talvez por inércia, talvez por se fazer tarde para o regresso, pelo que voltámos atrás, sabendo já que iríamos chegar com a noite a cair sobre a aldeia, nesse tempo em que as horas ainda eram dadas pelo sino de bronze da torre, e não por gravações marteladas em altifalante de igreja. Quanto tempo demoraram a dar pela sua falta? A pergunta insiste, comigo; e o que me inquieta, por outro lado, é não saber se esse homem, celibatário, teria tido alguém que esperava por ele, amante, ou criada, ou uma dessas primas solteiras que, no seu íntimo, sonhavam com um casamento que as libertasse de uma velhice de virgens beatas no círculo do padre». In Nuno Júdice, O Anjo da Tempestade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, 2009.

Cortesia de DQuixote/JDACT