«… fez-nos deparar com um texto inédito
dactilografado e assinado pelo punho do próprio Miguel Baptista Pereira
(1929-2007)
respeitante ao Programa de História da
Filosofia Medieval por ele proposto para o ano lectivo de 1971-72. O
interesse por essa matéria levou-nos nessa ocasião a fotocopiar o original.
Encontrando-se em fase de preparação as Obras
Filosóficas Completas de Miguel B. Pereira talvez seja
interessante darmos a conhecer o inédito. Certamente que um mero Programa não
tem a relevância de uma obra filosófica. Todavia, por um lado, não é muito
vulgar evidenciar-se a longa passagem de Baptista Pereira pela docência
da Filosofia Medieval, habituados que estamos a lembrá-lo, sobretudo,
isto é, talvez só após 1973/74, mais ligado ao ensino da Antropologia Filosófica,
área em que sobressaiu como Mestre e como pensador. A verdade porém é que Pereira leccionou História da Filosofia
Medieval pelo menos desde 1965/66, regência que manteve, como dissemos, até
1972/73. Antes, quer dizer, a partir de 1958/59 lecciona História da Filosofia
em Portugal; em 1960-61: História da Filosofia Antiga, Lógica e Metodologia,
Axiologia e Ética (com Luís Reis Santos); em 1961-62: História da Filosofia
Antiga, Lógica; e a partir da data lembrada (1965) consagrou-se talvez
exclusivamente à Filosofia Medieval, exclusividade rompida no ano lectivo
1973/74 em que passou a abraçar, com a Antropologia, a Ontologia (então
unidas), e nesse mesmo ano havendo regido ainda cumulativamente a disciplina
de Introdução à Filosofia.
Por outro lado, e na sequência de
algum trabalho já realizado, julgamos que, talvezmesmo mais do que (ou pelo
menos tanto quanto) a inspecção aos Sumários registados pelos docentes, como
contributos para se fazer a história do ensino da Filosofia no centenário da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, se deveria estudar (sempre
que isso fosse possível) os Programas gizados pelos protagonistas desses
100 anos. O exame do momento em que um docente universitário pensa um Programa
lectivo pode ser eloquente quanto à sua perspectiva filosófica, e esta dimensão
não tem sido bem aproveitada até hoje. Ora, Baptista Pereira
encontrava-se perfeitamente fadado para o ensino da Filosofia Medieval. Sendo
certo que na lista das suas obras não se encontram trabalhos específicos sobre
a matéria, a sua dissertação de doutoramento sobretudo testemunha de maneira
ímpar o seu invulgar domínio nessa área científica. Neste campo ele aliás afigurava-se-nos
como um herdeiro dos Conimbricenses haja em vista que tal como estes também Pereira citava profusamente, como que
em hipertexto, como hoje em dia se diz. Mais ainda, em todos os seus artigos,
sempre ansiosamente aguardados, recordo, o seu conhecimento ímpar da História
da Filosofia nunca soçobrava, antes se agigantava, no momento de sobraçar e
sopesar os
temas medievais. Pelo menos em
duas ocasiões distintas, tivemos ocasião de nos referirmos ao conhecimento que
da Filosofia Medieval detiveram dois mestres portugueses, Vieira Almeida
e José Gil, ambos, como Pereira,
não se revendo como especialistas na matéria. Ora, neste sector do conhecimento
filosófico Miguel Baptista Pereira superou-os a todos. De facto, em Ser
e Pessoa, obra publicada quatro anos antes do inédito que ora publicitamos,
além dos inúmeros excursus de uma
fantástica erudição, poder-se-á considerar o capítulo III, Formas medievais do método filosófico, como um clássico no seu
género, mormente no âmbito da literatura em português.
Impressiona
depois a plêiade de teólogos e filósofos abordados com precisão e inequívoca
actualização, ou melhor: estudos e ponderados, em muitos casos, com particular
relevo para Agostinho de Hipona, Alberto Magno, Alberto de Saxónia, Alexandre
de Hales, Anselmo de Cantuária, Averróis, Avicena, Boaventura, Boécio, (…)
Godofredo de Fontaines, Guilherme de Moerbeke, Guilherme de Ockham, Guilherme
de Saint-Thierry, (…) Pedro Abelardo, Pedro Hispano, Pedro Lombardo, Ricardo de
Mediavila, Ricardo de São Vítor e Tomás de Aquino, entre muitos mais. Todo este
conhecimento, evidentemente, não poderia ser explicado exclusivamente pela
passagem do autor pelo seminário católico diocesano em que se instruiu enquanto
jovem, antes nos devendo remeter para uma densamente responsável e meditativa prática
hermenêutica da Filosofia, qual a que ele mesmo regista, por exemplo, num
artigo de 1983, com as seguintes palavras, aliás destinadas a toda a
Faculdade de Letras: Estabelecer a
comunicação objectiva e crítica com o passado, esclarecer o significado do
nosso enraizamento temporal, investigando criticamente os possíveis contextos
da nossa referência à tradição, sob pena de ruptura da nossa consciência do
mundo e da consequente obnubilação de sentido, são tarefas que especificamente incumbem
às ciências humanas praticadas nas Faculdades de Letras». In
Mário Santiago Carvalho, Um Inédito de Miguel Baptista Pereira sobre Filosofia
Medieval, Revista Filosófica de Coimbra, nº 39, FLUC, Coimbra, 2011.
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