«A
mais forte impressão da nossa primeira juventude, tínhamos então sete anos, de
que guardamos ainda uma viva recordação, foi a emoção que provocou na nossa
alma de criança a visão de uma catedral gótica. Sentimo-nos imediatamente
transportado, extasiado, preso de admiração, incapaz de nos furtarmos à
atracção do maravilhoso, à magia do esplêndido, do imenso, do vertiginoso que
se desprendia dessa obra mais divina que humana. Desde então, a visão
transformou-se mas a impressão permanece. E se o hábito modificou o carácter impulsivo
e patético do primeiro contacto, nunca nos pudemos defender de uma espécie de
arrebatamento perante esses belos livros de imagens erguidos sobre os nossos
adros e que estendem até ao céu as suas folhas de pedra esculpida. Com que
linguagem, por que meios poderíamos exprimir-lhes a nossa admiração,
testemunhar-lhes o nosso reconhecimento, todos os sentimentos de gratidão de
que o nosso coração está cheio por tudo o que nos ensinaram a apreciar, a
reconhecer, a descobrir, até essas
obras-primas mudas, esses mestres sem palavras e sem voz?
Sem palavras e sem voz?, que dizemos!
Se estes livros lapidares têm as suas letras esculpidas, frases em
baixos-relevos e pensamentos em ogivas, não falam menos pelo espírito
imorredoiro que se exala das suas páginas. Mais claros do que os seus irmãos
mais novos, manuscritos e impressos, possuem sobre eles a vantagem de traduzir
apenas um sentido único, absoluto, de expressão simples, de interpretação
ingénua e pitoresca, um sentido purificado das subtilezas, das alusões, dos
equívocos literários. A língua de pedras
que esta arte nova fala, diz com muita verdade Colfs, é simultaneamente clara e
sublime. E tanto fala à alma dos mais humildes como dos mais cultos. Que língua
patética, o gótico das pedras! Uma língua tão patética, com efeito, que os
cânticos de um Orlande de Lassus ou de um Palestrina, as obras para órgão de um
Haendel ou de um Frescobaldi, a orquestração de um Beethoven ou de um Cherubini
e, maior do que tudo isso, o simples e severo canto gregoriano, talvez o único
canto verdadeiro, só por acréscimo dizem algo mais do que as emoções causadas pela
catedral em si própria. Ai daqueles que não amam a arquitectura gótica ou, pelo
menos, lamentemo-los como deserdados do coração.
Santuário
da Tradição, da Ciência e da Arte, a catedral gótica não deve ser olhada como
uma obra unicamente dedicada à glória do cristianismo, mas antes como uma vasta
condenação de ideias, de tendências, de fé populares, um todo perfeito ao qual
nos podemos referir sem receio desde que se trate de penetrar o pensamento dos ancestrais,
seja qual for o domínio: religioso, laico, filosófico ou social. As abóbadas
ousadas, a nobreza das naves, a amplidão das proporções e a beleza da execução
fazem da catedral uma obra original, de harmonia incomparável, mas que o
exercício do culto não parece dever ocupar por inteiro. Se o recolhimento sob a
luz espectral e policroma dos altos vitrais, se o silêncio convida à oração,
predispõem para a meditação, em compensação o aparelho, a estrutura, a
ornamentação, desprendem e reflectem, no seu extraordinário poder, sensações menos
edificantes, um espírito mais laico e, digamos a palavra, quase pagão. Podem aí
descobrir-se, além da inspiração ardente nascida de uma fé robusta, as mil
preocupações de grande alma popular, a afirmação da sua consciência, da sua
vontade própria, a imagem do seu pensamento no que ela tem de complexo, de
abstracto, de essencial, de soberano.
Se
há quem entre no edifício para assistir aos ofícios divinos, se há quem penetre
nele acompanhando cortejos fúnebres ou os alegres cortejos das festas anunciadas
pelo repicar de sinos, também há quem se reúna dentro delas noutras circunstâncias.
Realizam-se assembleias políticas sob a presidência do bispo; discute-se o
preço do trigo ou do gado; os mercadores de panos fixam ai a cotação dos seus
produtos; acorre-se a esse lugar para pedir reconforto, solicitar conselho, implorar
perdão. E não há corporação que não faça benzer lá a obra-prima do seu novo
companheiro e que não se reúna uma vez por ano sob a protecção do santo padroeiro».
In
Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação
Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge, 1975.
Cortesia
E70/JDACT