«Trago
hoje pata Ofir um livrinho maravilhoso, de poesia modernista. Leio-o, embevecido,
ao cantinho da lareira, longe do bulício tresloucado da cidade dos homens, com
a calma interior de um monge beneditino, no limiar escatológico da cidade de Deus.
Embrenho-me nesta floresta de lirismo puro, quase paradisíaco, anterior aos
cânones da poesia clássica e das formas estereotipadas, obsoletas, da racionalização
rígida, rectilínea, das estruturas lexicais. Pressente-se, a cada passo, no
fluir divagante da corrente lírica, o arfar de uma alma cristalina, conduzida,
sem peias nem escolhos, pelos meandros da Emoção, tal como o primitivismo
borbulhar da arte poética. É como se a modernidade da arte fosse o livre
regresso dos anseios abissais da alma, sem pontuação, sem métrica, sem rima, ou
melhor, com as pausas, os ritmos e os ecos da alma, aos espaços edénicos das
origens. Pequenos retalhos do ser, mesclados de miragens de Heraclito e
Ésquilo, de Henri Heine e Mao-Tsé-Tung, a gotejarem da clepsidra da história,
no microcosmo telúrico da Humanidade. Este livrinho, de pureza helénica, não
poluído pela lógica sintáctica, ressumando frescura e beleza em cada suspiro de
alma, em cada estrofe livremente concebida, faz-me esquecer, por instantes, as
assimetrias escabrosas e insalubres desvios da normal reflexão e sensatez dos
homens. Deste florilégio sui géneris,
de raro encanto, Pó de Argila Pé de Rosa,
da autoria de Maria Adelina Vieira, ao qual já me referi em Crepusculares, apraz-me transcrever esta
amostragem, de fervoroso sabor panteísta:
Graças ó Terra que me acolheste no teu
manto
e me deixaste neste canto
desenrolar-me no fio da minha condição
numa concordância secreta com o destino
do universo de mim só
numa lenta e insensível adesão
a um espírito
a que o corpo anuirá com a idade
e por ti encontrará a forma superior
de liberdade!
In
Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.
Cortesia
de APPACDM/JDACT