Tempo
de Apresentar. Uma herança peculiar
«Sou
proprietário de uma livraria situada na baixa de uma cidade com cerca de cem
mil habitantes. A baixa é o centro histórico, antigo bairro medieval. Não me
posso queixar da localização, pois a essa zona aflui ainda muita gente, por aí
se concentrar uma parte significativa do comércio da cidade. Quase todas as
ruas são pedonais, o que propicia um ambiente agradável a quem por lá se
desloca. A concorrência também é pouca, já que apenas seis livrarias existem na
cidade. Metade delas são uns cochichos, como a minha.
O
surgimento de grandes superfícies comerciais nos arredores veio constranger
muito do comércio tradicional. Várias lojas faliram, outras estão perto de
falir. Em poucos anos a baixa deixou de ser aquilo que era. Cem mil pessoas são
muita gente, mas poucas compram livros e menos ainda os leem. Resumindo: não é
fácil sobreviver com esta actividade. Herdei a livraria do meu tio paterno. A
memória mais antiga que tenho é um acontecimento passado nela, num dia em que
lá fui com a minha mãe, que procurava um livro para oferecer. A certa altura,
enquanto ela passava, atenta, os olhos pelas lombadas dos livros, o meu tio
ajoelhou-se à minha frente, agarrou-me nos ombros e, com os olhos bem firmados
nos meus, disse: - Ouve bem, Carolino! Quando aprenderes a ler, vê se
ganhas gosto pelos livros! Fez uma pausa, que eu não interrompi, e continuou: -
Quando cresceres, esta livraria fica para ti.
Ouvi
isto sem mostrar espanto mas, lá no fundo, estranhava o facto de ele querer
dar-me todos aqueles livros. Olhei para uma parede coberta por estantes com
prateleiras cheias e pensei que nunca os conseguiria contar, quanto mais
encontrar um livro que me pedissem. Já não consegui olhar para as outras
paredes porque o meu tio pegou na minha mão e levou-me para o meio da rua.
Virou-me para a fachada da livraria, que na altura me parecia enorme, e disse: -
Olha aquelas letras! Fui eu que as mandei fazer a um ferreiro, assim mesmo, com
aquele tamanho e aquele feitio. É o nome da livraria. Sem conhecer uma sequer, olhei
atentamente as letras colocadas acima da porta e da janela, a toda a largura da
fachada. Não tinha reparado nelas antes.
- Vou-te contar a história do nome da
livraria, E contou, só que, na altura, achei-a comprida e complicada e esqueci-a.
Mas, o ano após ano, ouvi-o contá-la várias vezes. O meu tio, quinze anos mais
velho do que o meu pai, foi a primeira pessoa da família a estudar numa
universidade. Desde muito cedo mostrou uma inteligência e uma vontade de
aprender muito além das comuns. Podia ter tirado qualquer curso em qualquer
área, mas a paixão pelos livros levou-o a optar por Literatura.
O
meu pai teve uma inclinação bem diferente, cursando engenharia eletroctécnica. Fez
o curso contrariado, apenas para agradar ao meu avô, mas mal o terminou começou
a trabalhar como electricista, aquilo que sempre quis ser. Sempre preferiu actividades
em que pudesse usar mais as mãos. O meu avô, pescador com um modesto barco por
sua conta, conseguiu fazer com que ambos os filhos estudassem, para não se sujeitarem
à vida dura do mar.
Quando
o meu tio terminou o curso fez uma proposta, por brincadeira, a um velho
ferreiro. Ofereceu pela sua oficina uma quantia baixa, que não tinha,
dizendo-lhe que queria fazer dali uma livraria. O velho respondeu: - Olha que
esta pocilga até te ficaria bem entregue! Coisa que sempre me deu que pensar
foi isso das letras em carreirinho a fazer palavras onde fica escrito o que a
gente diz e pensa! Não as compreendo porque não as aprendi. Nunca pus os pés
numa escola». In António Galrinho, O Museu das Palavras, Temas Originais, Setúbal,
Livraria Uni-Verso, 2014, ISBN 978-989-688-216-7.
Cortesia
de TOriginais/JDACT