sábado, 23 de agosto de 2014

Joana. A Louca. Rainha Joana I de Espanha. Linda Carlino. « Tenho de pedir a Filipe pela enésima vez que alimente os nossos soldados. Enquanto vós dançais, cantais e jogais os vossos joguinhos imbecis, bons soldados espanhóis têm vindo a morrer»

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Casamento
«(…) Os que tinham aposentos nos palácios reais não ficavam tão prejudicados, mas para quem tivera de arranjar alojamento, a vida ficara bastante difícil.
Era necessário pagar esses alojamentos, o que significava terem de vender roupas e jóias. Em diversas ocasiões pedira dinheiro a Filipe e ele respondera-lhe sempre que trataria disso a seu tempo, mas nada fizera. Era verdade que ela não insistira, principalmente porque se esquecera, mas também porque tinha vergonha de pedinchar o que lhe pertencia por direito. Os olhares desdenhosos do secretário e do tesoureiro de Filipe recordavam-lhe, embora sem necessidade, que ela não tinha qualquer autoridade na corte. Então, era melhor ignorar o problema. Infelizmente, o tio estava à espera de ser recebido e Joana via-se obrigada a discutir as questões financeiras da sua casa, quer gostasse quer não.
Maria abriu a porta e lá estavam o tio e o camareiro-mor. Ia sem dúvida ser uma reunião muito séria: dois homens muito experientes e conhecedores e ela, tão jovem e tão ignorante daqueles assuntos práticos. Trocaram-se saudações formais e depois, olhando uns para os outros, todos esperaram que alguém abrisse a discussão. Joana engoliu em seco, com a carta a tremer-lhe na mão. - Sei por que motivo haveis pedido esta entrevista, senhores, a minha mãe menciona-o. - Na verdade, Senhora, viemos informar-vos de que nos vamos encontrar com o arquiduque esta tarde - retorquiu Dom Fradique, mostrando-lhe a carta que recebera da rainha Isabel. - Sim, Senhora - prosseguiu o camareiro. - Não podemos permitir que isto continue. É inaceitável que gente nobre sofra privações e dificuldades e que viva em condições muito inferiores ao seu estatuto. Não parece bem, Senhora. Devemos manter certos padrões. Está em jogo a nossa honra. Peço-vos perdão pela minha ousadia, mas alguma coisa tem de ser feita e sem mais tardar.
Ele tinha razão e Joana esperava que, na sua posição de camareiro-mor, tivesse êxito junto de Filipe. Afinal, era aos camareiros que cabia o tratamento das questões financeiras e não a ela; por outro lado, ele não iria desfazer-se em lágrimas quando Filipe se zangasse por lhe pedirem de novo a mesma coisa. - Tendes razão. Já, abordei essa questão muitas vezes com o meu senhor e estou convicta de que Chimay não está a cumprir as instruções dele. - Seria aquilo convincente ou todos saberiam que Filipe e a sua corte ignoravam flagrantemente os pedidos dela? -É melhor que vós, como camareiro-mor, lembreis ao meu marido o acordo de casamento e insistais em que a pensão seja depositada imediatamente no nosso tesouro. Então, ficará tudo tratado e podemos prosseguir a nossa vida. Dom Fradique não se mostrou nada confiante. - Espero que tenhais razão, mas tenho muitas dúvidas. Pode ser que tudo o que é flamengo me levante suspeitas imediatas, mas tenho a sensação de que, desde o início, nós, os espanhóis, não fomos bem-vindos. Somos desdenhados e ouvem-se sussurros e risos abafados por detrás das nossas costas. Portanto, o tio também notara. - Oh, tenho a certeza de que vos enganais. Então, estamos a passar um tempo maravilhoso, em caçadas, festas e bailes. Todos se divertem juntos. Apenas vejo rostos felizes e gargalhadas. - Há, um assunto sério de que tenho de falar - O seu tom era duro. A mudança de tema para os passatempos da corte aborrecera-o e ele queria que Joana o percebesse. - Esperava não ter de vos falar disto. A minha esquadra devia ter partido há muito e ter já chegado a Espanha. - Sim, eu sei que Margarida devia ter partido há semanas, mas Filipe odeia ter de se separar dela e não a deixa ir. Tenho é pena do meu pobre irmão, que tem de tolerar uma espera tão prolongada, ansiando pela noiva. - Não posso incomodar-me com o que Filipe ou João querem.
O melhor é falar claramente do que eu quero, respondeu, irado. - Tenho de pedir a Filipe pela enésima vez que alimente os nossos soldados. Enquanto vós dançais, cantais e jogais os vossos joguinhos imbecis, bons soldados espanhóis têm vindo a morrer. Morrem de frio, de fome ou sabe-se lá de que doenças! Há muito que as nossas provisões acabaram e o fundo que nos destinaram se esgotou! - Dom Fradique, por favor acalmai-vos. - Joana sorriu para o consolar. - Meu Deus, haveis ficado vermelho. Fico preocupada por vos ver tão zangado. É claro que me entristece o facto de termos perdido alguns dos nossos homens, mas sabeis tão bem como eu que a morte certa homens constantemente através da fome e da doença; em todo o lado e não apenas aqui. Talvez estejais a envelhecer, querido tio, e é por isso que essas mortes vos afectam tanto». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT