terça-feira, 5 de agosto de 2014

Fado. David Mourão-Ferreira. «Levaram-te a meio da noite; a treva tudo cobria! Foi de noite numa noite de todas a mais sombria! Foi de noite, foi de noite e nunca mais se fez dia!»

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Abandono
Por teu livre pensamento
foram-te longe encerrar
tão longe que o meu lamento
não te consegue alcançar!
E apenas ouves o vento!
E apenas ouves o mar!
 
Levaram-te a meio da noite;
a treva tudo cobria!
Foi de noite numa noite
de todas a mais sombria!
Foi de noite, foi de noite
e nunca mais se fez dia!

Ai! Dessa noite o veneno
persiste em me envenenar!
Oiço apenas o silêncio
que ficou em teu lugar.
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar.
Poema de David Mourão-Ferreira, 10-IV-1959


Primavera
Todo o amor que nos
prendera
como se fora de cera
se quebrava e desfazia
ai funesta primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia.

E condenaram-me a tanto
viver comigo meu pranto
viver, viver e sem ti
vivendo sem no entanto
eu me esquecer desse encanto
que nesse dia perdi.

Pão duro da solidão
é somente o que nos dão
o que nos dão a comer
que importa que o coração
diga que sim ou que não
se continua a viver.

Todo o amor que nos
prendera
se quebrara e desfizera
em pavor se convertia
ninguém fale em primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia.
Poema de David Mourão-Ferreira

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