sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Terra Inquieta. Manuel Faria. «… um casalinho de mestrandos, em preparação de tese profunda e suculenta de modernas interpretações e comentários acerca do pensador alemão, escarafunchando-lhe com a verruma da Razão Pura os arcanos insondáveis das suas antinomias de dialéctica…»

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«(…) Neste dia tal de Agosto, de calor ardente, apenas uma leve brisa agita as abas do chapéu-de-sol, sob o qual a Lenita dorme em sua cadeira de lona, tendo ao regaço, definitivamente fechado, um livro de aventuras dos Cinco. Sua irmã, não gémea no sono, devora o seu aventuroso livrinho, também ao ar livre, no ângulo sombrio da sala do fogão e do convívio. A meu lado, a nossa Loti, liberta da ideia glacial do Ártico, compõe memórias turísticas acerca da Irlanda, ,cujos maciços de verdura e castelos medievos debruçados sobre planuras de água, lembram dramas de Shakespeare. E, sobre o meu canhenho de notas, discorre a esferográfica, meditativa e filosófica. Recorda a data de ontem, à distância de quase meio século, em que veio à luz dúbia do candelabro de uma maternidade distante, a mãe das gémeas, circunvagando os olhitos negros pelo gesso lavrado do tecto, enquanto eu, tendo esgotado já, pelos corredores de espera, os maços de tabaco francês do quiosque da esquina, contemplava, triunfante de orgulho e alegria, o escrínio fetal dos meus genes. A manhã de hoje decorreu serena e calma, no alto da duna, mirando o formiguedo humano, que o Domingo despeja na praia, a palmilhar a areia húmida cheia de lampejos, da maré baixa, e a cabriolar de mil e uma maneiras, nas cristas argênteas das ondas. Descubro, nesta mole de corpos desnudos, o casal holandês e sua prole, junto ao guarda-sol aberto, largo, imóvel e inútil. Alguém viu entre a bagagem um livro de Kant, pelo que suspeitei tratar-se de um par de turistas estranho, preocupado com problemas filosóficos, possivelmente um casalinho de mestrandos, em preparação de tese profunda e suculenta de modernas interpretações e comentários acerca do pensador alemão, escarafunchando-lhe com a verruma da Razão Pura os arcanos insondáveis das suas antinomias de dialéctica transcendental. Afinal, veio a verificar-se, pelo contacto dialogal com estas inocentes criaturas, que ela é uma modesta enfermeira, ele um simples funcionário bancário e que o tal suposto ,livro de conteúdo metafísico, é uma trivial novela holandesa que eles desmontaram da sua biblioteca particular para colmatarem, na época balnear, as descontraídas horas de lazer. Abertas, de par em par, as portas da sua privacidade intelectual, chegou-se à conclusão comesinha de que a verdadeira filosofia deste casal holandês é a filosofia da vida, ou seja, a filosofia pragmática dos parâmetros tecnológicos da produção e do consumo, em que se movimenta a CEE…» In Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.

Cortesia de APPACDM/JDACT