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Neste dia tal de Agosto, de calor ardente, apenas uma leve brisa agita as abas
do chapéu-de-sol, sob o qual a Lenita dorme em sua cadeira de lona, tendo ao
regaço, definitivamente fechado, um livro de aventuras dos Cinco. Sua irmã, não
gémea no sono, devora o seu aventuroso livrinho, também ao ar livre, no ângulo
sombrio da sala do fogão e do convívio. A meu lado, a nossa Loti, liberta da
ideia glacial do Ártico, compõe memórias turísticas acerca da Irlanda, ,cujos
maciços de verdura e castelos medievos debruçados sobre planuras de água, lembram
dramas de Shakespeare. E, sobre o meu canhenho de notas, discorre a esferográfica,
meditativa e filosófica. Recorda a data de ontem, à distância de quase meio
século, em que veio à luz dúbia do candelabro de uma maternidade distante, a
mãe das gémeas, circunvagando os olhitos negros pelo gesso lavrado do tecto,
enquanto eu, tendo esgotado já, pelos corredores de espera, os maços de tabaco
francês do quiosque da esquina, contemplava, triunfante de orgulho e alegria, o
escrínio fetal dos meus genes. A manhã de hoje decorreu serena e calma, no alto
da duna, mirando o formiguedo humano, que o Domingo despeja na praia, a
palmilhar a areia húmida cheia de lampejos, da maré baixa, e a cabriolar de mil
e uma maneiras, nas cristas argênteas das ondas. Descubro, nesta mole de corpos
desnudos, o casal holandês e sua prole, junto ao guarda-sol aberto, largo, imóvel
e inútil. Alguém viu entre a bagagem um livro de Kant, pelo que suspeitei
tratar-se de um par de turistas estranho, preocupado com problemas filosóficos,
possivelmente um casalinho de mestrandos, em preparação de tese profunda e
suculenta de modernas interpretações e comentários acerca do pensador alemão,
escarafunchando-lhe com a verruma da Razão Pura os arcanos insondáveis das
suas antinomias de dialéctica transcendental. Afinal, veio a verificar-se, pelo
contacto dialogal com estas inocentes criaturas, que ela é uma modesta
enfermeira, ele um simples funcionário bancário e que o tal suposto ,livro de
conteúdo metafísico, é uma trivial novela holandesa que eles desmontaram da sua
biblioteca particular para colmatarem, na época balnear, as descontraídas horas
de lazer. Abertas, de par em par, as portas da sua privacidade intelectual,
chegou-se à conclusão comesinha de que a verdadeira filosofia deste casal
holandês é a filosofia da vida, ou seja, a filosofia pragmática dos parâmetros
tecnológicos da produção e do consumo, em que se movimenta a CEE…» In
Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.
Cortesia
de APPACDM/JDACT