E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) Em Roma o papa confirmou o casamento e coroou os cônjuges. Foi no
seu regresso que Afonso, o Ourém,
recebeu o primeiro título de marquês em Portugal. Quatro meses antes uma
carta da viúva do Infante João, a viver
em Castela junto da filha, referia a boa nova: nascera no início de Março uma
menina a D. Isabel e a João II seu marido: Isabel também de nome, e vira a
luz do dia em Madrigal de las Altas Torres, Castela, onde se achava a mãe e a
Corte. Meus pais vieram para a terra dos seus antepassados, Sevilha, mas descobriram
que nada aí conseguiam porque os poucos familiares tinham emigrado. Restava um
velho e solitário tio-avô que, em segredo, regressara à religião dos seus
avoengos da Judeia. Octogenário, cego, vivia de recordações com uma velha e
enrugada escrava moura que tomara conta dele como uma filha. Em Sevilha
podia-se viver bem e certos indivíduos faziam fortunas, como em Cádiz, com a
pirataria muitas vezes, apesar de cristãos, com negócios de partilhas com os
próprios infiéis da costa marroquina. Meus pais chegaram por uma noite estrelada
e acoitaram-se numa estalagem nas portas da cidade, porque não havia tempo para
procurar familiares que apenas se conheciam, então, por carta e recados que
viajantes amigos ou comerciantes ou mercadores conhecidos trocavam. Passaram
mal pois havia jogo, bêbedos e muita bicharada, ratos, baratas e piolhos com a
costumada companhia de percevejos que atacavam as carnes quentes de suor e
cansaço e, nalguns casos de vinho a mais, durante o sono.
Tínhamos um tio frade, irmão de um outro frade agostinho, ambos netos
de conversos, que nos ajudou. O tio Gil Jesus, gordo e glabro, com aquele rosto
luzidio, fruto da vida claustral em certos casos, arranjou uma casa. A família
ficou a viver quase junta. Nós, no primeiro andar para onde nos alçávamos por
uma escada íngreme e a prima Aldonça no andar térreo, só com a filharada a
maior parte do tempo, pois o marido era marinheiro. Herdou meu pai parte da
biblioteca do outro tio, que lha legou antes de morrer. Foi dela que retirei os
rudimentos do meu latim e do meu grego, coadjuvado com os ensinamentos de um
grande amigo de meu tio Gil, frei Jerónimo, franciscano do convento a par quase
com o outro palácio do duque de Bragança, ali ao lado de um pano da muralha
fernandina, a sudoeste da cidade. Mas eu só nasci mais tarde...
Meus pais tinham casado há um ano apenas, numa igreja de Florença. O
celebrante fora o padre Benedicto e não houvera, como com a nova imperatriz do
Império Romano, bênçãos especiais como cresça
e floresça e multiplique-se o teu nome e a tua descendência como a areia do mar…
e a bênção de Deus omnipotente desça sobre ti e a tua descendência seja
bendita, e multiplique-se com toda a honra e prosperidade, e sirvam-no todos os
cristãos. Não foi assim. Isso foi o que disse o arcebispo a D.
Leonor. A descendência de meus pais fui eu porque o meu irmão e a minha irmã,
antes de mim, morreram de febres. Ninguém disse à minha mãe, que era bela e
pura também, que recebesse rosas e flores
para que tu e a tua descendência floresçais na terra... com o tom poético
das grandes ocasiões e porque os pobres não têm direito (quantas vezes!),
à poesia que é uma arte divina. No casamento de meus pais não houve nem pontes
ornadas, nem torneios, nem panos de ouro, nem cavaleiros engalanados, nem
vestes de prata e gemas de gala, nem arautos e tocadores de trompetas, nem
unicórnios, nem touros vestidos de pano samadino, nem capricórnios, nem justas
onde participaram príncipes, embaixadores e nobres ingleses, castelhanos,
carintianos, nem Ajax e o rei de Tróia, nem arautos nem os anjos coloridos de
azul, ouro e vermelho, como são pintados os mensageiros celestes da Estíria... Mas
foi assim, como com toda a gente, porque o mundo é feito de mudança e diferença
e também não deixa de ser belo por isso, sobretudo quando nós deixamos que
assim o seja». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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