quinta-feira, 21 de agosto de 2014

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «… cresça e floresça e multiplique-se o teu nome e a tua descendência como a areia do mar… desça sobre ti e a tua descendência seja bendita, e multiplique-se com toda a honra e prosperidade, e sirvam-no todos os cristãos».

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E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) Em Roma o papa confirmou o casamento e coroou os cônjuges. Foi no seu regresso que Afonso, o Ourém, recebeu o primeiro título de marquês em Portugal. Quatro meses antes uma carta da viúva do Infante  João, a viver em Castela junto da filha, referia a boa nova: nascera no início de Março uma menina a D. Isabel e a João II seu marido: Isabel também de nome, e vira a luz do dia em Madrigal de las Altas Torres, Castela, onde se achava a mãe e a Corte. Meus pais vieram para a terra dos seus antepassados, Sevilha, mas descobriram que nada aí conseguiam porque os poucos familiares tinham emigrado. Restava um velho e solitário tio-avô que, em segredo, regressara à religião dos seus avoengos da Judeia. Octogenário, cego, vivia de recordações com uma velha e enrugada escrava moura que tomara conta dele como uma filha. Em Sevilha podia-se viver bem e certos indivíduos faziam fortunas, como em Cádiz, com a pirataria muitas vezes, apesar de cristãos, com negócios de partilhas com os próprios infiéis da costa marroquina. Meus pais chegaram por uma noite estrelada e acoitaram-se numa estalagem nas portas da cidade, porque não havia tempo para procurar familiares que apenas se conheciam, então, por carta e recados que viajantes amigos ou comerciantes ou mercadores conhecidos trocavam. Passaram mal pois havia jogo, bêbedos e muita bicharada, ratos, baratas e piolhos com a costumada companhia de percevejos que atacavam as carnes quentes de suor e cansaço e, nalguns casos de vinho a mais, durante o sono.
Tínhamos um tio frade, irmão de um outro frade agostinho, ambos netos de conversos, que nos ajudou. O tio Gil Jesus, gordo e glabro, com aquele rosto luzidio, fruto da vida claustral em certos casos, arranjou uma casa. A família ficou a viver quase junta. Nós, no primeiro andar para onde nos alçávamos por uma escada íngreme e a prima Aldonça no andar térreo, só com a filharada a maior parte do tempo, pois o marido era marinheiro. Herdou meu pai parte da biblioteca do outro tio, que lha legou antes de morrer. Foi dela que retirei os rudimentos do meu latim e do meu grego, coadjuvado com os ensinamentos de um grande amigo de meu tio Gil, frei Jerónimo, franciscano do convento a par quase com o outro palácio do duque de Bragança, ali ao lado de um pano da muralha fernandina, a sudoeste da cidade. Mas eu só nasci mais tarde...
Meus pais tinham casado há um ano apenas, numa igreja de Florença. O celebrante fora o padre Benedicto e não houvera, como com a nova imperatriz do Império Romano, bênçãos especiais como cresça e floresça e multiplique-se o teu nome e a tua descendência como a areia do mar… e a bênção de Deus omnipotente desça sobre ti e a tua descendência seja bendita, e multiplique-se com toda a honra e prosperidade, e sirvam-no todos os cristãos. Não foi assim. Isso foi o que disse o arcebispo a D. Leonor. A descendência de meus pais fui eu porque o meu irmão e a minha irmã, antes de mim, morreram de febres. Ninguém disse à minha mãe, que era bela e pura também, que recebesse rosas e flores para que tu e a tua descendência floresçais na terra... com o tom poético das grandes ocasiões e porque os pobres não têm direito (quantas vezes!), à poesia que é uma arte divina. No casamento de meus pais não houve nem pontes ornadas, nem torneios, nem panos de ouro, nem cavaleiros engalanados, nem vestes de prata e gemas de gala, nem arautos e tocadores de trompetas, nem unicórnios, nem touros vestidos de pano samadino, nem capricórnios, nem justas onde participaram príncipes, embaixadores e nobres ingleses, castelhanos, carintianos, nem Ajax e o rei de Tróia, nem arautos nem os anjos coloridos de azul, ouro e vermelho, como são pintados os mensageiros celestes da Estíria... Mas foi assim, como com toda a gente, porque o mundo é feito de mudança e diferença e também não deixa de ser belo por isso, sobretudo quando nós deixamos que assim o seja». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

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