Muriel
[…]
«Mas sabia e
sei que um dia não virás
que até
duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se
exististe ou se eu mesmo existi
pois na
dúvida tenho a única certeza.
Terá mesmo
existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora
certa aquele lugar?
À força de o
pensar penso que não.
Na melhor
das hipóteses estou longe
qualquer de
nós terá talvez morrido.
No fundo
quem nos visse àquela hora
à saída do
metro de serrano
sensivelmente
em frente daquele bar
poderia
pensar que éramos reais
pontos
materiais de referência
como as
árvores ou os candeeiros.
Talvez
pensasse que naqueles encontro
sem que
talvez no fundo procurássemos
o encontro
profundo com nós mesmos
haveria
entre nós um verdadeiro encontro
como o que
apenas temos nos encontros
que vemos
entre os outros onde só afinal somos felizes.
Isso era por
exemplo o que me acontecia
quando há
anos nas manhãs de roma
entre os
pinheiros ainda indecisos
do meu
perdido parque de villa borghese
eu via essa
mulher e esse homem
que naqueles
encontros pontuais.
Decerto não
seriam tão felizes como neles eu
pois a
felicidade para nós possível
é sempre a
que sonhamos que há nos outros.
Até que
certo dia não sei bem.
Ou não
passei por lá ou eles não foram
nunca mais
foram nunca mais passei por lá.
Passamos
como tudo sem remédio passa
e um dia
decerto mesmo duvidamos
dia não tão
distante como nós pensamos
se estivemos
ali se Madrid existiu.
Se portanto
chegares tu primeiro porventura
alguma vez
daqui a alguns anos junto de califórnia vinte e um
que não te
admires se olhares e me não vires.
Estarei
longe talvez tenha envelhecido.
Terei até
talvez mesmo morrido.
Não te
deixes ficar sequer à minha espera
não
telefones não marques o número
ele terá
mudado a casa será outra.
Nada penses
ou faças vai-te embora
tu serás
nessa altura jovem como agora
tu serás
sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de
luz todos os olhos
que exibe o
sossego dos antigos templos
e que
resiste ao tempo como a pedra
que vê
passar os dias um por um
que
contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao
assalto pelo sol
daquele
poder que pertencia à lua
que
transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de
leve vive que nem dão por ela
as parcas
implacáveis para os outros
que embora
tudo mude nunca muda
ou se mudar
que se não lembre de morrer
ou que enfim
morra mas que não me desiluda.
Dizia que ao
chegar se olhares e não me vires
nada penses
ou faças vai-te embora
eu não te
faço falta e não tem sentido
esperares
por quem talvez tenha morrido
ou nem
sequer talvez tenha existido».
Poema de Ruy
Belo, in ‘Todos
os Poemas’
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