O Peregrino
«(…) No modo como ele
olhava para todos aqueles enfermos de corpo e da alma era fácil descobrir a
atroz tranquilidade de um inquisidor, cujo máximo prazer seria meter nos horrendos
cárceres, ou deitar às fogueiras, um povo inteiro, repetindo as horríveis
palavras dirigidas pelo abade de Citeaux a Lavaur: Matai, matai tudo: Deus
saberá distinguir os que lhe são fiéis! Ao chegar perto do mosteiro, o
desconhecido parou e pareceu orientar-se. Decerto o muro que ficava à esquerda
da grande porta sofrerá alguma alteração, pois que passou e tornou a passar
três ou quatro vezes naquele sítio, como se não pudesse acreditar que estava
vendo. A porta pequena era aqui, lembro-me bem, murmurava o peregrino. Ter-me-ão os ferimentos perturbado a
memória? Terão os meus irmãos dispersos abandonado a abadia, ou deixar-se-iam adormecer na antiga
inquietação? E um suor frio inundou a fronte do desconhecido ao vir-lhe
aquele pensamento, que evidentemente significaria para ele uma grande desgraça;
mas, de repente, soltou um grito de alegria, descobrira, a poucos passos do
lugar costumado, aquilo que procurava. Uma grande estrela de madeira dourada
erguia-se sobre a arquitrave da pequena porta, que na verdade não parecia
merecer tão belo ornamento. Aquela portinha, que teria escapado à observação de
quem se colocasse diante da porta principal, tão bem oculta estava pelos
ornamentos e florões maciços da fachada tinha toda a aparência de já não servir
havia muito tempo. Uma espessa camada te pó cobria a porta, que em tempo fora
pintada de verde. Aos cantos pendiam teias de aranha carregadas de pó, indício
seguro de que aquela porta para ali estava esquecida e abandonada, sem servir havia
muito. E contudo, se observasse com alguma atenção, era fácil reconhecer que
ali devia haver algum mistério; primeiro, porque toda aquela ostentação de
abandono tinha em si mesma a prova da sua pouca sinceridade, e depois, porque,
apesar de todas as precauções, as dobradiças estavam bem untadas e brilhavam ao
sol. O peregrino esperou que o sol se tivesse escondido de todo e que na
esplanada do mosteiro não houvesse ninguém; depois aproximou-se da pequena
porta, e, ajoelhando no limiar, disse em verso: Procurei a luz, encontrei as
trevas. Bati e a porta estava fechada. Piedade para mim! A pequena porta girou
sem ruído nos gonzos e deixou ver a entrada de um escuro corredor.
O peregrino, sem mostrar
a mínima surpresa por aquele facto, que decerto deixaria cheia de espanto outra
qualquer pessoa, escoou-se pelo corredor, e a porta fechou-se-lhe imediatamente
nas costas. O misterioso personagem deu dois ou três passos incertos, como quem
não sabia o terreno que pisava, porque a mudança, que observara na porta,
indicava que o lugar misterioso, que procurava, tinha sido mudado para outra
parte do mosteiro. Mas pouco tempo durou a incerteza do viajante. Sentiu
apoiar-se-lhe com força nos ombros mão estranha, uma voz murmurar-lhe ao
ouvido: Sabes que o caminho que segues pode conduzir-te à morte. Sou um chefe, respondeu
o desconhecido com um aceno de plena tranquilidade. Um chefe?!... E que prova
me apresentas tu para provar que o és? Posso mostrar-te a imagem d’Aquele que
foi, circunda pelas imagens dos homens. A grande medalha!, exclamou a voz, em
que se reconhecia um misto de espanto e respeito. A grande medalha, a dos sete
luminares da ordem!, replicou severamente o peregrino. Vamos, irmão, este
caminhar nas trevas deve durar ainda muito tempo? Isso acabou, mestre, respondeu
a voz do desconhecido. Estes mistérios não se fizeram para quem conhece os
outro: Brilhou então uma luz viva na extremidade do corredor, o peregrino
caminhou com passo firme adiante do seu novo companheiro, que era uma espécie
de monge, de cabeça coberta por um capuz, que apenas lhe deixava ver os olhos. Seguindo
aquele corredor, os dois homens chegaram, por uma rampa quase insensível, ao centro
de um subterrâneo, que correspondia ao altar-mor da igreja de Mont-Serrat. As numerosas
grutas que havia na montanha, tinham facilitado aos frades o meio de tornarem impenetráveis
os seus esconderijos». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História
da Europa Medieval e seus costumes, tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C,
1848, corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil, 2009.
Cortesia de Wikipedia/JDACT