sábado, 23 de agosto de 2014

Dialéctica das Consciências. Ensaios. Ferreira Silva. «… reprodução friamente científica e post mortem da natureza e do conteúdo da beleza, da santidade e da verdade. Não são um mapa mas sim um panorama idealizado do Universo, pintado com todas as cores dos desejos da alma»

jdact e wikipedia

O Andróptero
«(…) A nossa existência, em lugar de se erguer ágil e leve como um ser alado para uma residência superior, precipita-se na materialidade e se extravia, se turva , e, ao vacilar, é tomada de vertigem, como se estivesse embriagada. Portanto, ao delírio alado e transcendente, ao impulso aerostático de que se fala no Fedro, contrapõe-se a embriaguez sensorial e finitizante, esse destino de tudo quanto cai e que também se afirma em nossa alma com não menos força. Enquanto este último impulso nos reveste dum corpo terrestre, o primeiro afã aponta para a reputação de todo o corpóreo, de tudo o que impede a ascensão divina do andróptero. A virtude das asas consiste em levar o que é pesado para as regiões superiores. Encontramos aqui uma verdadeira doutrina da liberdade e da libertação para a alma oprimida do homem. É a doutrina das Ideias que desempenha essa função desopressiva e arejante, comovendo as muralhas da finitude e dilatando o espaço de nosso exercício espiritual. Essas Ideias, historicamente tão famosas, não devem ser compreendidas como noções abstraídas das realidades sensíveis, da maneira pela qual entendemos comummente as nossas noções e conceitos, pois dessa forma não seriam originais, mas sim cópias; seriam realidades mais singelas, por esquemáticas, e não mais ricas que as coisas sensíveis como o são as Ideias platónicas. O conceito é sempre mais deficiente e pobre do que a coisa que conceitua, pois reproduz uma forma sensível, sendo portanto uma simples cópia ou imitação, enquanto as Ideias não são naturezas derivadas, mas sim Ser original, matrizes absolutas. A Ideia é justamente o contrário de um conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto o conceito nos encerra no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Ideias nos lançam num processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato. A presença das Ideias é assinalada pela irrupção da possibilidade. Como diz Füller: … no sentido mais profundo da palavra, todas as Formas continuam a ser princípios morais e a revestir o halo socrático. As Ideias platónicas são ideais e sendo ideais são objectos de adoração. Nada têm de uma reprodução friamente científica e post mortem da natureza e do conteúdo da beleza, da santidade e da verdade. Não são um mapa mas sim um panorama idealizado do Universo, pintado com todas as cores dos desejos da alma.
As Ideias se comportam como uma realidade completa em relação à realidade incompleta do mundo, como algo expressado em relação ao infuso e embrionário, como o infinito em relação ao finito. Exercem, portanto, um papel distensivo e libertador, pois nos facultam a evasão da pura constatação fáctica e do confinamento dos sentidos e dos conceitos. Apesar de realizadas, imóveis e estáticas, são o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser. É essa tensão, essa marcha rumo às constelações infinitas do mundo eidético, esse Eros cosmogónico, que mantém o Universo em existência». In Vicente Ferreira da Silva, Dialéctica das Consciências, Ensaios, Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002, ISBN 972-27-1166-0.

Cortesia da INCM/JDACT